Bernardo tá chegando

Bernardo tá chegando

Acordei às seis horas. Procurei, procurei e não achei. O que estava procurando? O sono que perdi. Lembrei então de uma história que minha saudosa mãe contava, e resolvi escrever.

Minha avó, a quem chamávamos de Dindinha, costurava até altas horas, à luz de um lampião que bruxuleava. Aquela luzinha fraca, oscilando ao sabor do querosene, induzia o sono. E a Dindinha, lá pelas tantas, começava a falar sozinha.

- Bernardo, vai embora.

Passavam uns minutos e ela, conversando com seus botões.

- Ainda é cedo Bernardo.

O pé já quase sem forças para fazer girar a máquina, ela, feito sonâmbula, parece que avisava.

- Bernardo tá chegando.

Mas quem era este que chegava, quase todas as noites, sem nunca bater à porta? Se fosse nos dias de hoje, não seria o Bernard, o jogador da seleção brasileira de futebol que tem “alegria nas pernas”. Muito menos o Bernard, ex-jogador da seleção brasileira de voleibol, inventor do saque “jornada nas estrelas”. Poderia ser, mas não era o também ex-jogador da seleção de vôlei e treinador “nervoso e agitado”.

Todos os exemplos citados não carregam a vogal “o”. Acontece que ontem ou hoje a pronúncia dos açorianos Bananalenses seria Bernardo. Posso afirmar categoricamente que não era nenhum desses. Não se tratava de esportes. O assunto era de outras esferas.

A Dindinha nem possuía televisão, nem sabia de jogos de vôlei ou futebol. E quem era esse Bernardo que chegava não se sabia de onde? Dindinha não se assustava com a chegada dele. Era de paz o Bernardo. Ela falava com carinho o nome dele.

Dindinho, que, mais do que qualquer outra coisa na vida, apreciava uma calibrina, chegava em casa invariavelmente um tanto bambo, as pernas trançando-se num balé indecoroso. Era recebido pela Dindinha a cada dia com um adjetivo diferente: bebum, pé-de-cana, beberrão, bêbado, pudim de cachaça, borracho, pinguço.

Ainda bem que a semana só tem sete dias. Senão teria que empregar outros sinônimos não usuais para ela: alcoólatra, alcoolista, ébrio.

Ele ora chegava tropeçando nas pernas, ora era um amigo em estado um pouco menos ruim que o trazia para casa. O Dindinho entrava, tropicava até o quarto no afã de encontrar a cama e, no caminho, ouvia calado o xingamento do dia.

Depois tomava um banho e deitava-se para dormir.

Mas o Dindinho, sempre que escutava aquele nome – Bernardo – ficava tenso, atormentado. Um desassossego invadia seu peito. Mas ele nada perguntava para ela. Embora aquilo o perturbasse, o Dindinho confiava piamente na sua velha.

O tempo foi passando e um dia o Dindinho não aguentou. Antes de sair para o boteco, chapéu na mão, parado diante da porta, sem demonstrar qualquer ciúme, parecendo apenas saciar uma curiosidade, ele perguntou assim de chofre, sem rodeios.

- Quem é esse Bernardo?

E obteve a resposta mais improvável.

- Bernardo é o sono. Chamo por esse nome, como poderia ser qualquer um. É um nome que me dá paz e faz com que consiga costurar mais um pouco.

- Mas por que Bernardo?, insistiu o Dindinho, coçando atrás da orelha como se uma dúvida se instalasse ali.

- É que São Bernardo é meu santo predileto. É meu protetor. Eu peço pra ele velar meu sono.

Dindinho pegou o rumo do boteco, como sempre. Mas desta vez uma coceira na testa o perturbava como se houvesse mergulhado num formigueiro.

Aroldo Arão de Medeiros

28/07/2014

AROLDO A MEDEIROS
Enviado por AROLDO A MEDEIROS em 07/08/2024
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