A vida é uma luta diária

Noite de tempestade. Trovões estrelavam a trilha sonora e os relâmpagos davam brilho à escuridão que se alastrara. Jorge se encontrava, neste momento, ilhado, em meio a uma enchente que alagou a avenida Afonso, próxima de sua casa. Faltava pouco para chegar ao seu canto de repouso. Imaginava, em sua cabeça, chegar em casa, abrir aquela garrafa de vinho, colocar a música no alto e desfrutar daquele momento único que não retornaria em nenhum momento da eternidade. Ao chegar ao seu lar, lembrou que não tinha ovo, nem muito menos suco. Tomou um copo d'água e sentou-se com seu celular na mão. Deixou a música tocar enquanto olhava para aquele teto e paredes nus, refletindo. Jorge sonhava que um dia aquilo tudo se transformaria, e o início de sua casa se tornaria o início de um reino. A questão é que tudo isso leva tempo, e ninguém consegue dizer com precisão quanto tempo cada coisa deve levar.

Para comer, decidiu fritar o resto de salsicha congelada que ele mesmo guardara, com um pouco de arroz que havia lhe sobrado. Do mesmo jeito que o dinheiro chega cheio, ele se vai e se torna um vazio com rapidez, mas os dias do mês continuam passando, enquanto a renda não volta a entrar.

De manhã, volta do trabalho sozinho, de bicicleta. Pega suas coisas e pedala por minutos, horas, quilômetros, na intenção de chegar ao seu segundo trabalho. Depois, almoça às pressas, vai para o segundo emprego, que só termina à noite. Ele vende o seu dia para outra pessoa, e ao mesmo tempo, vende sua vida e alma para a sociedade. A vida é um grande empréstimo que se paga com luta diária, e em que só se colhem frutos depois de impossibilitados de comparecer com o serviço, descartando a população para um espaço "de descanso", que se torna mais uma agonia tardia. Às vezes, sente-se um ser desprovido de qualquer utilidade, também se sente como um completo ímã de atrocidades, mas quando alcança metas, ah, sim, se sente uma pessoa maravilhosa merecedora de demasiada atenção. É que tudo isso não depende apenas de Jorge, mas das pessoas que ao seu redor no local onde ele passa a maior parte de seu dia.

No fim do dia, Jorge se encontra sozinho, num ônibus, com sua mochila rasgada e seu tênis sujo. Sua bicicleta foi levada por pessoas bem-intencionadas, que acharam por bem pegar para si o objeto de trabalho daquela máquina velha que será substituída, em breve, por artificialidades.

No fim, Jorge chega em casa com muitos sonhos para realizar, e empecilhos para consegui-los. Quantos Jorges têm na sociedade, meu Deus?