O resto é só com você e Clarice


Queria iniciar-se em Clarice. Queria levar para a praia, onde passaria todo o mês de dezembro, duas ou três obras de Clarice, de preferência as mais acessíveis para quem nunca leu Clarice. E o pai lhe dissera que este pobre cronista era muito bom em Clarice.

"Exagero, minha filha, ninguém é bom em Clarice. Quer a opinião sincera de um amigo do seu pai? Vamos lá. Orelhas, contracapas, prefácios, introduções, notas explicativas, rodapés, tudo isso faz um mal danado à percepção da prosa de Clarice. Fuja dos doutores em Clarice. Vão colocar uma pedra drummondiana no meio do seu caminho. Quando enfrentar um livro de Clarice, limite-se ao texto de Clarice. Leia-o duas vezes, no mínimo, saindo imediatamente da última página para a primeira, e recomeçando, uma segunda volta no círculo, como recomendava o esquecido Álvaro Lins aos leitores da Recherche proustiana. Clarice não merece menos. O resto é só com você e Clarice, cabeça, coração e estômago, uma aventura espiritual (por que não?) sem guias nem acompanhantes. Ainda assim, é possível dar a mão a alguém (logo entenderá) em plena travessia. A voz de Clarice (lá vou eu caindo no grande pecado) tem força e delicadeza suficientes para alimentar em seu íntimo o que você talvez ainda não tenha definido como desejo de amor, beleza e autodescoberta, o que ainda não se fez luz nem abismo, o que ainda não encontrou a palavra essencial. Alimentar, como um segredo sussurrado ao ouvido, um simples toque, um aceno. Porque o código literário em Clarice nunca é leviano. É bom que me relembre: o resto é só com você e Clarice. Mando pelo portador deste bilhete dois volumes de Clarice: Perto do coração selvagem (romance) e Laços de família (contos). Não tenho pressa em recebê-los de volta. Fique à vontade com Clarice."


[11.1.2008]