O macho na cultura pop

Estava na estação de metrô em Salvador quando chegaram três rapazes que sentaram-se ao meu lado e começaram a conversar sobre filmes. Falavam alto, o que tornava impossível não escutar o papo. Chamou-me atenção o fato de um deles ter dito que queria ser como o agente James Bond.

“O cara pode ter a mulher que ele quer”, afirmou o rapaz.

Pelo contexto da conversa, ele se referia especificamente ao Bond interpretado por Sean Connery. Todos os Bonds do cinema, literatura e outras mídias eram bonitos, charmosos, autoconfiantes e desejados pelas mulheres. Mas o 007 do falecido ator escocês era conhecido por possuir características particulares que forneciam ainda mais carisma e charme ao personagem. Era um Bond viril.

Portanto, compreensível que existam jovens que queiram ser como ele. Quem não quer ser atraente, corajoso, autoconfiante e com um trabalho foda? Bond se transformou para alguns em uma espécie de “ideal do macho alfa”. E não apenas ele. Em filmes clássicos do noir, por exemplo, o homem durão, belo e imponente é personagem de destaque, que também possui um trabalho emocionante: ser detetive.

Ao refletir sobre essas concepções de masculinidade, é inevitável mencionar um produto comumente usado pelo macho alfa que aparece em filmes do século XX: o cigarro. Por alguma razão, fumar era atrativo. Estar com um cigarro na boca era sexy e fazia o macho parecer ainda mais viril, embora estivesse arruinando o próprio pulmão (nota: na época ainda não havia consenso social formado a respeito dos malefícios desse produto).

No entanto, o tempo trouxe mudanças. Assim como o próprio cigarro foi reconhecido como algo perigoso, a ideia do “macho alfa” também passou a ser criticada. E isso inevitavelmente foi refletido na cultura pop.

Até o próprio James Bond passou a ser retratado de forma mais realista. Por exemplo, o seu trabalho como espião não tem o glamour que se supõe. Os filmes protagonizados por Daniel Craig demonstram isso de forma competente. Se alguém quiser seguir os passos do personagem e se tornar espião, pode se decepcionar. É possível que o espião da vida real tenha que ser anônimo e precise evitar intrigas amorosas. Envolver-se em aventuras em que haja necessidade de matar está fora de questão. E não há aquele idealismo patriótico. Se há um motivo para não matar espiões do inimigo, é a possibilidade de comprá-los e fazê-los mudar de lado.

Uma ênfase maior no realismo apresenta o Bond de Craig como uma representação complexa e multidimensional para além de ideais como “macho alfa”. Essa desconstrução do “homem viril” não atinge apenas a espionagem da cultura pop. Há obras de ficção detetivesca em que o detetive não é o implacável macho que se envolve como “femmes fatales”, mas possui uma caracterização com várias facetas. Cito como exemplo a obra literária “Brooklyn sem pai nem mãe”, de Jonathan Lethem, em que o protagonista é um homem chamado Lionel Essrog, que sofre com a Síndrome de Tourette, transtorno que o faz ser alvo de desprezo e gozação.

Essa nova abordagem do que é masculino alcançou outras artes, como música, em que a diversidade no rock foi fundamental. Bond e detetives de filmes noir eram homens brancos e com um específico uso de roupas “adequadas” para o macho.

Contudo, a ascensão do rock popularizou um estilo distinto de moda masculina. As vestes do macho já não eram apenas o terno e a gravata. Com o rock, jeans e jaquetas eram combinadas e tornavam-se a vestimenta “oficial” da rebeldia pregada pelo gênero musical. E mais adiante, figuras do rock também manifestaram rejeição à masculinidade convencional, o que incluía o uso de roupas que “que não são para homens”. David Bowie talvez seja o exemplo mais emblemático.

Compreender Bowie pode parecer algo contraintuitivo. O personagem que ele criou, o andrógino Ziggy Stardust, desafiava as normas tradicionais e binárias de gênero. Era uma maneira de expressar a existência de um novo modelo de "homem" que contrariava estereótipos aceitos pela sociedade. Portanto, há um contexto cultural específico por trás.

Naquela época, a ideia de que há “roupas de menina” ou “roupa de menino” era muito mais aceita do que é hoje. Se atualmente algum cantor utilizar “roupas de mulher” para se apresentar no palco, não vai causar tanto impacto quanto antigamente. Isso se deve ao fato de que a moda também sofreu mudanças significativas na questão do gênero. No livro “O Império do Efêmero”, o autor Gilles Lipovetsky escreve sobre moda masculina-feminina:

“A divisão enfática e imperativa no parecer dos sexos se esfuma; a igualdade de condições prossegue sua obra, pondo fim ao monopólio feminino da moda e ‘masculinizando’ parcialmente o guarda-roupa feminino.” Mais à frente, Lipovetsky escreve: “O que vemos? Evidentemente, um movimento de redução da diferença enfática entre o masculino e o feminino, movimento de natureza essencialmente democrática”. Isso está no contexto da “moda aberta”, uma realidade que causaria pavor no autor de Deuteronômio, que no capítulo 22, versículo 5 diz: “Não haverá traje de homem na mulher, e não vestirá o homem veste de mulher”.

É importante nos atentarmos a determinados termos no escrito de Lipovetsky: “igualdade de condições” e “natureza essencialmente democrática”. Ambos implicam numa maior diversidade na moda masculina. Para ser considerado “homem”, não é mais necessário se apegar a um estilo rígido. Igualdade e democracia, tanto na moda quanto na percepção do que é masculino, também foram os principais objetivos dos movimentos feminista e LGBTQ+. E não apenas na moda.

As feministas contestaram a postura que o “macho alfa”, seja o real ou o da cultura pop, tinha com as mulheres. Não faltam acusações de misoginia e machismo contra James Bond e contra seu criador Ian Fleming. As críticas certamente ajudaram a amenizar a forma como Bond é retratado nos cinemas, na literatura ou em qualquer outra mídia.

Os movimentos LGBTQ+ ampliaram a noção do que é ser “homem”, propondo maior inclusividade. Ademais, ajudou a desconstruir a ideia de que “todos os homens são heterossexuais” e a imagem do “homem durão” e insensível. Em séries, filmes e literatura, não é mais incomum a noção de homem que escapa ao modelo “branco, hétero e durão”.

Voltemos à estação do metrô. Nota-se na conversa dos rapazes um saudosismo de uma masculinidade passada ou de uma característica dela. Contudo, não dá para necessariamente acusá-los de “reacionarismo” (embora existam movimentos retrógrados que se fundamentam no retorno de tal modelo masculino). O ideal do homem passou por diversas transformações e isso se refletiu na cultura pop. Mas não foi e não é um processo linear. Ao admirar o Bond dos anos 1960, o rapaz pode não querer o pacote completo. Alguém pode desejar o charme do espião, porém rejeitar o seu modo de tratar as mulheres. É por isso que não se sabe exatamente qual o “futuro da masculinidade”. Não tem como dizer que estamos caminhando para uma plena desconstrução do homem.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 04/08/2024
Reeditado em 05/08/2024
Código do texto: T8121672
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