A Bruxa da Liberdade
Quando nasci, um anjo torto, desses que vive na sombra, disse: “pra você não calha ser gauche. Não calha ser professor, não calha ser doutor, não calha nada composto de partículas fundamentais. Vai, Ariel, ser místico na vida.” E místico fui, sou e serei. Chamo verdade o que chamam de loucura, chamo intuição o termo paranoia, leio sobre o outro lado do mundo em um baralho de cartas ancestrais, encontro caminhos lógicos em livros metafísicos e me vejo preso por grilhões invisíveis.
Os semelhantes sempre se cruzam. Enquanto os médicos fazem convenções complexas construídas com conclusões completas coletadas com cuidado dos constructos de carne conhecidos como cidadãos, enquanto professores frivolamente falam firmemente dos fatos e falham em focar no fim de fazer filosofia na fina fronte das futuras falanges, os místicos matutam morbidamente a mediocridade da matéria, medindo mudanças megalomaníacas nas massas miseráveis do mundo.
Não há místico que não tenha cruzado com setenta e sete outros antes da metade da vida. Alguns são, outros foram, outros serão, mas o mesmo anjo das sombras os apontou para o cargo antes mesmo da escolha. Mesmo os que renegam sua metafísica jamais abandonam a vibração poderosa entoada por suas palavras, o vento que acompanha seus gestos, as sincronicidades peculiares que permeiam o cotidiano. Não se diz não às ordens angelicais.
“Místico” é apenas um termo guarda-chuva, cada qual prefere seu próprio. Há magos, magistas, ocultistas, goétios, xamãs, médiuns, feiticeiros e bruxas, entre muitos outros. Há tradicionalistas, assim como os contrários a tradição, há os que cultuam e os que dominam, mas cada qual apontado individualmente pelo servo do Uno. Assim como um cardiologista pode colaborar com um endócrino, assim como um professor de geografia pode colaborar com um de matemática, os diversos grupos de místicos colaboram entre si através da potência metafísica que carregam. Da mesma forma que médicos dividem hospitais, professores se encontram em escolas, o local de trabalho dos muitos místicos é o “destino” - particularmente prefiro o termo “Dharma”, mas que cada místico se refira a vontade do cosmos pelo léxico que preferir.
Como magista, encontrei recentemente uma bruxa. Renegava-se por completo a ser bruxa, mas o era. No fundo de seu coração, guardada nas partes mais profundas de seu inferno pessoal, estava uma chave. Uma chave que, para ela, de nada servia. Nenhum de seus grilhões sequer reagia a seu encaixe, quanto mais o dos muitos seres com quem havia cruzado. Mas a porta de minha cela mental tremia em sua presença. Aquela chave enferrujada, já há muito esquecida, encaixava perfeitamente entre as grades metafísicas de minha própria prisão. Talvez ela tivesse me prendido, talvez ela achara a saída por acidente, talvez o mesmo anjo que me colocou em cativeiro colocou em seu peito a solução. Não importa. A chave lá estava.
Místicos protegem seus corações profundamente, e não há para bruxas temor maior que magistas, e vice-versa. A chave não me seria oferecida, e nem eu a pediria diretamente. Era preciso quebrar a jaula que guardava a chave, para que a mesma fosse usada. Fácil tarefa arrombar o peito de pessoas queridas, que de bom grado entregam as salvações, mas de desconhecidos desconfiados, tais processos são lentos e delicados. Fácil também seria um acordo entre místicos, mas não o é possível com aqueles que renegam sua sombra.
Sincronicidades, entretanto, são generosas com os que as procuram. O coração da bruxa guardava muito mais que uma leve chave. Guardava a pressão de uma vida ferida em busca de não ser aquilo que é. Por infortúnio de seu caminho, as barreiras que o protegiam explodiram bruscamente, arremessando sentimentos, memórias e frustrações para cada canto da garota. Por fortuna de meu caminho, entretanto, arremessara, mesmo há uma distância espacial incomensurável, a chave diretamente em minhas mãos.
Lembro-me das poucas palavras que trocamos seriamente sobre a metafísica, em que a mística me disse “encontre alguém que liberte o Karma de você”. Feliz ou infelizmente, seu sacrifício violento abalou minha cela. Chave em mãos, abri a porta e segui pelo corredor escuro, sem vontade de olhar para trás, ignorando os sons de outros prisioneiros do mesmo complexo, até mesmo os da portadora da chave.
Não serei hipócrita de dizer que sinto compaixão ou arrependimento pela explosão, afinal, mal conhecia a feiticeira. Não lhe desejo sofrimento, mas também não peço aos deuses por sua amenização. Não vejo nela mais que uma sincronicidade misteriosa, uma piada cósmica de mau gosto escrita pelo anjo das sombras desde nossos nascimentos. Mas agradeço a pequena bruxa, por guardar com tanto zelo a liberdade de minhas amarras e por me permitir, apenas com a vibração de suas palavras místicas, soltar-me dos grilhões.
Agradeço de coração. Que em seu caminho ache a chave de sua cela, sem que precise distorcer o mundo para obtê-la. Adquirida minha chave, infelizmente não há mais como tocá-la no cárcere, mas alguém a tocará, um dia, em alguma das muitas existências, numa das muitas metafísicas intrínsecas à física em si.
Agradeço o instante de coração aberto. Deixo as bênçãos da Mãe acalentando sua mente. E sigo, procurando o septuagésimo oitavo a cruzar meu caminho. Que tua pena seja branda e que tua chave se revele sem violência.
Nomeio-a Bruxa da Liberdade, e que se liberte quando o cosmos a ensinar a destrancar os próprios grilhões.