Acidente
Através do beco desce Baco atrás do bico de todo santo dia bem cedinho. Do seu lado passa um bêbado batendo no seu braço esquerdo sem se equilibrar direito quase caindo no buraco no meio do caminho.
- Cuidado, reage Baco. E o bêbado só não foi tragado pelo buraco porque tropeçou, trôpego, caindo pro outro lado. Dir-se-ia que algum santo o protege. Então Baco ajuda-o a levantar e o acompanha até sua casa, atitude que o faz perder a carona para o biscate. Baco levará uma bronca do seu chefe, que chegou cedo ao trabalho e não teve bêbado atravancando seu caminho. "Me atrasei porque ajudei alguém necessitado" argumentaria Baco, mas seu chefe já perdeu a empatia porque o patrão não admite que haja simpatia entre chefe e subordinado. Baco fica branco com a possibilidade de perder o trabalho. Pensa na simpatia que faria para arranjar outro, que emprego tá difícil... Na descida topa com um conhecido agachado num canto, como que rezando, mas com um cachimbo improvisado simulando um preto velho, sendo que viciado. Um barco cheio de traumas veleja pelos pensamentos turvos de Baco, que assiste àquela cena de seu semelhante em desgraça sem poder assisti-lo. O barco vira nau, que vira navio, que não vira a embarcação no meio do caminho - quando do início da escravidão... "Oh Deus dos miseráveis!"
Baco bebe um dedo de café no fiteiro de seu Zé antes de chegar à parada. Acende um cigarro, o ônibus ascende à vista. Apaga. Entra. Paga. Se aglutina e some na massa que se impressa com as mãos erguidas para não cair com o solavanco do trem, digo, do coletivo. Fulano reage em consonância com a massa:
- Vai devagar, motor, tás carregando boi, não!
Então Baco pensa num carro de boi que que ganhara de seu pai na infância.
- Vai pegar o urso, é, motor?! - a voz vira um acorde de vozes em uníssono.
Alguém grita que sua parada passou, o que vira um protesto coletivo. Baco vê um camburão passar, que o faz lembrar de um navio negreiro terrestre. Compra uma pipoca a um ambulante que se esmaga no meio da multidão atrás de seu pão de mais tarde. O motor demora para passar o troco porque está com uma mão no volante dirigindo. Gera uma impaciência prolongada nos passageiros que querem passar. O motor dirige enquanto passa o troco. Poderia gerar um acidente, mas Baco chegará inteiro no bico de ajudante de pedreiro. Lembra da pedra no cachimbo de Chico, que era um exímio mestre com a colher, e se perdeu no vício. Dizem que foi gaia de mulher que fez José se perder na cachaça, mas ninguém se importa com isso. Vida amarga. Vida que segue, entre tantos entretantos... Um carro está esbagaçado na pista à direita, mas não dá para Baco ver porque está preso no lado esquerdo da massa. Há muitos curiosos. O ônibus passa porque não pode parar a engrenagem. Baco, enfim, chega ao trabalho, e logo lhe perguntam:
- Cadê Fulano e Beltrano, viesse com eles hoje não?!
E logo o encarregado emenda com a reprimenda:
- Chegar atrasado me quebra, Dionísio.
- Não vai acontecer mais, senhor. E aos outros: "Eles ainda não chegaram?! Pois vieram na frente, que aconteceu um imprevisto comigo..."
- Ainda não. O carro deve ter quebrado, só pode, porque Fulano não é de se atrasar...
Não era mesmo. Não sei quantos anos e só um atestado. Zero atrasos. Mais tarde daria no jornal local: Acidente mata dois e deixa um ferido. Imagens mostram o motorista Sicrano de tal, 22 anos, bêbado, avançando o sinal, atingindo em alta velocidade dois trabalhadores da empresa de tal, que morreram no local.
"Ah, se eu não tivesse me atrasado..."
Baco deve ser protegido por algum santo forte...
Mas mais forte que o santo de Baco é o caixa da família do rapaz que causou o acidente: saiu ileso da batida e também da justiça...
Amanhã Baco irá, de novo, sem carona. A empresa de tal não pode parar por causa de um "caso comum de trânsito".