A arte de se tornar invisível

Eu era muito nova quando comecei a tentar interpretar a indiferença e o desamor das pessoas. Minha mãe, tendo de batalhar pela vida do meu irmão caçula, diagnosticado na época com uma doença congênita no cérebro, precisava constantemente se ausentar de casa para levá-lo ao médico, nas muitas idas (e vindas) ao (do) hospital para poder ser avaliado e examinado, até a realização da cirurgia. Nessa ocasião, eu e meu irmão do meio ficávamos na casa de parentes ou vizinhos, para não ter de ficar sem supervisão de um adulto ou mesmo sozinhos em casa; meu pai, quando não estava trabalhando, acompanhava minha mãe e meu irmão.

Nas nossas idas à outras casas, passávamos por inúmeras situações. Desde a sensação inóspita de não sermos desejados ou de estar sobrecarregando os outros, até o desconforto de ter de lidar com palavras ásperas e a falta de paciência, sem nem ter emocional e maturidade para isso. Meu irmão parceiro dessas situações conflitantes, sempre tentava me convencer de ir embora de casa pois segundo ele, éramos "empecilhos " e todos ficariam bem melhor sem a gente" . Teve até uma ocasião em que ele conseguiu colocar na minha cabeça da gente se esconder debaixo da cama durante toda manhã para provar que se tivéssemos fugido, ninguém teria se importado. O piso era gelado e a estação era fria, mas convencida de que só "tirando a prova dos 9" poderíamos então colocar em prática as nossas "teorias" (e cismas), me aventurei nesse teste com ele. Ficamos horas a fio por lá. Naquele espaço apertado entre a cama e o chão, tentávamos acomodar nossos corpos e driblar o incômodo daquela posição de bruços por tanto tempo, além de tentar conter os "tremeliques" que percorriam por cada membro. A visão nos proporcionava ver a movimentação de nossa mãe pra lá e pra cá; ora ajeitando a casa, ora interagindo com nosso irmão mais novo. Então chegou a hora do almoço e ela foi até próximo da porta do quarto nos chamar. Lembro que meu irmão até sussurrou em meus ouvidos: " veja só, ela nem percebeu que 'fugimos ' de casa... nem se deu conta até agora... viu só como a gente não faz falta?..." nessa hora, depois de ter contido vários espirros devido à friagem, libertei um espirro estrondoso que rendeu um zangado daqueles por parte da nossa mãe. Ela então questionou até que horas iríamos ficar com essa brincadeira boba no chão gelado e se queríamos ficar doentes. Foi então que conclui que ela sabia o tempo todo que estávamos ali e por isso não se preocupou, e que a "tese " do meu irmão estava totalmente equivocada. Mas fora do ambiente familiar a situação era outra, tínhamos que lidar com as "selvas " as quais éramos submetidos e tentar sobreviver. Sem nenhum arranhão, nunca foi possível. Despedaçava o coração e deixava a alma em frangalhos. Foram dias difíceis e de muitas provações, que se for contar, muitos irão desistir da leitura dessa crônica que aqui escrevo e já se prolongou mais do que devia. Então retorno para o tema principal: "a arte de se tornar invisível" poderia resolver parte dos nossos problemas na vida em sociedade. Se não é possível fisicamente desaparecer, hoje, já calejada da vida, colecionadora de decepções e frustrações, tento ao menos não ficar muito visível, não estar no centro das atenções. Afinal, nunca tive essa intenção, embora até a minha tristeza era tachada como desculpa para atrair olhares alheios... mal sabem, eles é que eram alheios a tudo o que eu sentia e tive que calar dentro de mim. Aprendi também a chorar e sangrar por dentro. Sem dar qualquer pista do que realmente estava sentindo. E como diz um ditado: " tudo que a gente cala o corpo fala" (berra), não demorou para se manifestar através de doença. As tais doenças psicossomáticas não são exagero ou fantasia, têm se tornado cada vez mais comum nessa sociedade doente em que vivemos. Onde somos convocados a ser fortes o tempo inteiro... até que toda força se esgote e nos auto sabote. Então, em nome do meu bem estar físico, mental e espiritual, apenas me afasto do que me faz mal e não agrega em nada na minha vida. E isso também é des(aparecer)... é o meu poder de invisibilidade, de aparecer mais pra mim, dentro da minha morada interna, alicerçando todo meu ser para não desabar, alimentando meu amor próprio, a despeito de toda indiferença que tenta me aniquilar.

Fênix Arte
Enviado por Fênix Arte em 30/07/2024
Código do texto: T8117905
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