Sofia
Hoje ela invadiu o meu quarto em seu horário habitual. Logo após abrir os olhos, a observei. Tal qual um viajante contemplando uma paisagem ou um cachorro esfomeado vendo um pedaço de pão; assim, ela me admirava.
- Por que está me olhando desse jeito?! Tem algo de errado comigo?!
Não sei o porquê da pergunta, eu sabia que tinha.
Eu fazia mais perguntas, enquanto ela continuava lá, imóvel, praticando sua brincadeira preferida – e ridícula. Ficar sentada sob minhas pernas, se deleitando com o meu sofrimento.
- Eu preciso me levantar e ir trabalhar. Por favor, me dê licença.
Mas ela nem sequer piscou.
- Vamos... Você consegue! – disse para mim mesma, forçando as pernas na intenção de que elas ficassem livres.
A garotinha sentiu o solavanco e, quase como um passe de dança, escorregou pela coberta grossa. Seu vestidinho branco com detalhes rosa deslizou e, alguns segundos depois, seus pezinhos pequenos e delicados tocaram o chão.
- Por que você faz essa brincadeira inútil toda manhã, Sofia?! Sabe que eu não gosto...
A menininha me observou com expressão de curiosidade, como se eu tivesse algo que ela desejasse.
- E por que você nunca fala comigo? Só porque eu sou desse jeito? Eu sei... Minha companhia é desagradável, minha voz é chata e meu olhar é como de um peixe morto. Mas isso não justifica a sua desfeita de nunca ter aberto a boca para conversar comigo...
A criança virou as costas. Seu vestidinho balanceou lentamente ao redor de seu corpo e o pequeno ser foi buscar algo mais interessante para fazer.
- Talvez ela tenha ido brincar – pensei.
A linda menina passou pela porta do aposento e irrompeu a escuridão. Me senti chateada. Até uma garotinha de, talvez, três anos e meio, repudiou a minha presença. Ah, isso já era demais! Não demorou muito para que as primeiras lágrimas de solidão saltassem dos meus olhos.
Sentei-me na cama. E como doía fazer aquele movimento. Pisei no chão frio e imediatamente explorei com o pé direito o local onde havia largado minhas pantufas na noite anterior. Após calçá-las, levei alguns segundos para criar coragem e finalmente ficar em pé. Caminhei. Cada passo parecia afundar o chão de madeira e cada suspiro que eu dava me fazia ter mais vontade de me jogar na cama.
Abri as cortinas. Observei o sol que já raiava no horizonte e iluminava o meu rosto pálido e meu cabelo horroroso. Meditei por alguns segundos e, confesso, vi um pouco de beleza naquela cena.
- Você não tinha ido brincar? – perguntei a Sofia, que surgiu do meu lado repentinamente como um raio.
A menina me encarou com seus olhos azuis esverdeados – claros como um oceano límpido – e contemplou a paisagem, como eu fazia alguns segundos antes.
- Você tem razão... O dia está horrível! – afirmei, após ver a expressão de desprezo da criança ao olhar pela janela.
Imediatamente, o dia começou a ficar escuro. As nuvens negras – lentas e assombradas – começaram a pairar no céu. A solidão adentrou o meu coração novamente.
- Melhor eu ir trabalhar.
Sofia concordou.
Tomamos café juntas, sob a luz fraca da lâmpada da cozinha. Para variar, continuei a fazer perguntas que não eram respondidas. Preparei um sanduíche para mim e para ela.
- Ela não gosta de alface... Nem de tomate. Nem de presunto. Nem de pão. Só sobrou o queijo.
A menina encarou o queijo sob o pires, fez uma carinha de nojo e olhou para mim com uma expressão de desgosto. Imediatamente, perdi a fome que me restava. Resolvi não comer, também.
Sofia apontou para o relógio, pendurado por um prego na parede esquerda da cozinha. Observei que horas eram: 6:36. Não havia mais tempo para nada. Olhei-me no espelho do banheiro; já estava pronta, não precisava me arrumar. Pelo menos foi o que entendi quando a garotinha pisou com força no chão – na intenção de me apressar – ao me ver perdendo tempo admirando minha própria feiúra no reflexo do espelho.
- O ônibus atrasou... – justifiquei para os meus colegas.
Procurei minha mesa, mas tudo estava estranho.
- Por que todo mundo está me olhando? – perguntei.
Busquei com os olhos a minha escrivaninha, novamente. Tentei identificar algo que pudesse ser meu. Mas não encontrei. Quase desisti, quando vi aquele pequeno ser sentado suavemente sobre a minha cadeira, com seu figurino delicado e esvoaçante, me chamando com seus dedinhos brancos e finos.
- Obrigada, Sofia... – agradeci.
Olhei para o meu local de trabalho. Estava tudo tão diferente... Parecia que outra pessoa havia tomado conta dali.
- Foi você quem tirou as minhas coisas do lugar? – perguntei para a garotinha, que fez um aceno de “não” com a cabeça.
Pedi licença. A educada menina saiu imediatamente da minha cadeira. Sentei-me. Confesso que não tinha a menor noção do que iria fazer ali. Liguei o computador – eu ainda sabia mexer naquela coisa. Olhei, por um tempo, para a tela. Não sabia minha tarefa do dia, não sabia se devia fazer alguma coisa ou apenas vadiar. Minha única certeza era a de que todos estavam me olhando e fazendo comentários maldosos sobre mim.
- O que foi?! Nunca viram alguém de pijama?!
Me enchi de raiva. Tentei me concentrar e me esquecer daquele bando de idiotas. Vasculhei o computador de cima a baixo. Foi quando cliquei em uma pasta.
Em meio a tantas imagens, reconheci o meu rosto. Feio, como sempre. O rosto mais sem graça do mundo. No fundo de cada foto minha, em qualquer lugar que eu estivesse, ela estava lá. Completamente diferente de mim; deslumbrante e radiante. Eu parecia um monstro perto da perfeição dela. A bela Sofia se fazia presente em cada momento da minha vida. Em todas as épocas. Desde quando registrava minhas poucas aventuras na adolescência; até quando capturava momentos de minhas indecisões quando adulta. Me emocionei a ponto de chorar. Dei algumas olhadelas em quase todas as fotos da pasta; até que minha colega de trabalho apareceu.
- O que você está fazendo aqui, Márcia?
- Trabalhando, não está vendo? – disse eu, enxugando as lágrimas com a manga do meu moletom.
- Você não devia estar aqui...
- Eu já disse que estou trabalhando!
- Márcia... Vamos... Eu preciso te levar pra casa...
- Mas o que é isso?! Não está vendo que vim trabalhar? Não posso voltar pra casa.
Minha colega me puxou pelo braço, parecendo preocupada.
- Você não devia estar aqui a essa hora da noite...
- Noite? O sol acabou de nascer!
- O sol acabou de se pôr. Você não está bem... Eu vou te ajudar...
Demorou um tempo para que ela me convencesse a voltar para casa. E muito mais tempo para que os meus outros colegas de trabalho parassem de cochichar sobre mim.
Não sei muito bem como cheguei em casa. Só me lembro de estar deitada no banco traseiro do carro, depois em minha cama, enquanto ouvia infindáveis conselhos. Pelo o que eu entendi, ela me explicou os motivos pelos quais minha presença no escritório não era necessária. Disse que depois de tudo que eu havia passado eu havia ganhado uma boa folga. Foi só. Ela me esperou dormir – ou cochilar, no caso – e voltou para o trabalho.
Acordei alguns minutos depois. O abajur estava aceso. Busquei com os olhos algum sinal de Sofia. Não precisei procurar muito. Sentada na antiga e empoeirada poltrona, lá estava ela, perfeita, como sempre.
- Você me pregou uma peça, malandrinha. Boa noite, querida. – disse eu.
A garotinha acenou com a cabeça. Fechei os olhos, por pouco tempo. Ouvi suas sapatilhas pisarem suavemente no chão e seu vestidinho deslizar pela poltrona vermelha. Dei uma leve espiada no que ela estaria prestes a aprontar. A menininha começou a rodar deslumbrantemente, como uma bela bailarina. Seu vestidinho curto ondulava pelo ar gelado da noite e eu sentia a leve brisa que o movimento produzia bater em meu rosto encharcado pelas lágrimas de emoção. Vê-la me confortava. Provocava-me sentimentos que eu não sabia explicar direito.
- Linda! – exclamei, aplaudindo-a e a elogiando.
Enxuguei as lágrimas de minha face. Naquela hora eu já podia dormir em paz. Fechei os olhos e tentei pensar nas loucuras que a vida pode nos obrigar a cometer. Nas loucuras que a minha pobre garotinha, minha companheira inseparável, já havia me incitado a fazer. O sono vinha lentamente. Eu ainda ouvia os passos de dança daquela bela menina. Eu sabia que logo cedo a veria de novo.
Alguns a chamam de depressão, eu a chamo de Sofia.