Lembranças Amarrotadas
Passaram-se quase quarenta anos para que eu retornasse a Jampruca, pequeno município incrustado no Vale do Rio Doce, banhado pelas águas do Rio Itambacuri, onde eu me afoguei e vi a morte por um triz...
Na verdade, em Jampruca, vi a morte por dois trizes: a primeira, como já disse, ao me afogar nas águas do rio; a segunda quando vi o cano do revólver do Delegado Matias apontado para a minha cabeça, eu que me encontrava caído no chão após levar um chute no traseiro, desferido pelo Cabo Adão, com sua bota de couro.
Era o início de minha adolescência e por conta dessa idade inconsequente, quis assistir ao jogo do Atlético de Jampruca contra um time de Governador Valadares, de cima da charrete, para não pagar o ingresso. Durante muitos anos não entendi porque Boné, meu ídolo e o melhor zagueiro do Vale do Rio Doce e do Vale do Mucuri, que gostava de jogar sem chuteiras, protegido apenas pelo meião, ordenou peremptoriamente aos dois policiais, na verdade pistoleiros a serviço da elite local, para me expulsar da proximidade da cerca de lascas de madeira do campo de futebol, enquanto Alaor assistia tranquilamente, trepado nela.
Não sei de onde o meu pai ( o Zé Pascoalim, católico praticante, construtor da bela igreja de Jampruca) surgira, para me proteger e teve o revólver do Delegado apontado para ele, enquanto eu permanecia no chão, encharcado de xixi. A humilhação que meu pai sentira não lhe deixou alternativa, senão a de vender o sítio com porteiras fechadas e mudarmos.
Isto fora o resultado da participação política do Seu Zé Pascoalim, no período bravo do coronelismo dos anos 60. Fico pensando como seria a minha vida, ou a vida de todos lá de casa se esse evento não tivesse acontecido. Talvez eu fosse um pequeno proprietário de terras férteis de Jampruca ou teria me transformado em um latifundiário, assassino de sem-terras, dono de gado e gente, casado com Terezinha, ter tido muitos filhos, ou ter sido prefeito, ou ainda, titular absoluto na zaga central do Atlético de Jampruca. Quem sabe, motivo de orgulho de Dona Bertine e da minha professora primária Dejanira ou da doce Iracema, outra paixão reprimida.
Quarenta anos, convenhamos, é um tempo longo para manter viva as lembranças. Meu retorno se deu após a morte de meu pai, que também, jamais voltaria lá, e, quando percebi que a mágoa tinha passado e as feridas cicatrizadas.
A infância e a adolescência são fases de descobertas e seria bom se só lembrássemos dos momentos felizes. Obviamente que tenho boas recordações do que se poderia chamar de meu torrão natal. Nasci em São João do Oriente, mas de lá só me lembro da viagem na carroceria do caminhão, quando nos mudamos para Jampruca. Quantos anos tinha? Talvez quatro. Portanto Jampruca é a minha terra natal. Durante os anos magoados, reneguei-a. Recordo com nitidez a minha primeira experiência sexual com a prostituta Lurdinha, no casqueiro; a primeira masturbação; a doce paixão por Terezinha, que creio, nunca tomou conhecimento de minhas dores de amor; a maneira como Omar, motorista do caminhão de leite da Barbosa & Marques me tratava. Com ele eu me sentia adulto. Sempre levava umas laranjas do nosso pomar para ele e para a sua bela esposa, cujo nome me escapa. Não me perdoo por esquecer o nome dela, que sempre me oferecia um almoço, um café. Assim como não me perdoo por esquecer o nome de sua sedutora cunhada, de pele da cor de jambo maduro. Lembro-me de Dona Terezinha; de Seu Zé Brandão; de Seu Bruno e de Dona Fia. E como esquecer das brincadeiras com o pau-de-bosta?
A brincadeira consistia em irmos à noite, em meio à penumbra, ao campo de futebol e simularmos uma briga, para chamar a atenção dos garotos, que se encontravam próximos do campo e atraí-los ao local da contenda. Aos berros ameaçávamos quebrar a cara um do outro. Ouvindo os gritos, a garotada corria até ao campo, para apreciar o espetáculo. - Vem se você é homem, vem - ameaçava um. O outro respondia: - Solte este pau e vem na mão, filho da puta! Esse era o mote. Então, o que estava com o pau-de-bosta, pedia para alguém segurá-lo. Quem tinha caído na armadilha, esperava o resultado em silêncio, para em seguida cair na gargalhada. O infeliz, ao segurar o pau, lambuzava a mão de bosta. Era assim: enfiávamos a ponta de um pau numa fossa, pois nestes tempos não havia interceptores de esgoto, só pelo prazer de ver alguém com as mãos fedidas. Azar daquele que queria se alegrar da desgraça alheia; das brigas.
Ainda me lembro, vagamente, do Risadinha lendo o jornal de cabeça para baixo e urrar feito lobisomem quando davam-lhe cachaça; lembro-me do bar do Seu Beque, onde eu jogava sinuca com o dinheiro da venda de um cento de laranja. Tanto a venda do cento de laranja, reserva que julgava ter direito, quanto ao jogo eram feitos às escondidas de meu pai, em conluio com o dono e os frequentadores do bar. Um dia, quando tinha tudo para ganhar do Paulo Alfaiate, o melhor jogador de sinuca da cidade ( a verdade é que ele me dera algumas bolas de vantagem e jogava só com uma mão), o meu pai entrou de supetão no bar. Fiquei pálido, larguei o taco e abandonei o jogo. Montei na charrete e zarpei para a Boleirinha, para o sítio em que moramos a maior parte dos anos vividos em Jampruca. Felizmente não houve desdobramentos. Uma semana depois voltei ao jogo, mas antes tendo a certeza de que meu pai não se encontrava na rua.
Outra lembrança, não tão amarrotada era de que em Jampruca muita gente era assassinada. Não entendia a razão de tantas mortes em um pequeno lugarejo em que todos se conheciam e se cumprimentavam; onde os beatos e outros nem tanto, frequentavam a igreja. Após a missa das dezoito horas, celebrada pelo Padre Franco, alguns rapazes fogosos corriam ao casqueiro a fim de se acalmarem dos tormentos da libido.
Na década de 60 quando o mundo passava por transformações, sobre nós, brasileiros, o conservadorismo aprofundava seus tentáculos, com o golpe militar de 1964. Eu, como muitos de minha geração, vivendo naquele "fim de mundo", não estava preocupado em entender este fenômeno. Hoje, depois que aprendi a fazer análise de conjuntura, sei das consequências de se viver sob o peso do autoritarismo, dos regimes de exceção. No cubículo os pobres-diabos eram espancados por roubar galinhas.
Uma recordação feliz era assistir aos filmes no cinema do Heleno. O Último dos Moicanos e muitos outros em que os mocinhos matavam índios, búfalos e se matavam em duelos ao pôr-do-sol; Boca de Ouro com Jece Valadão; Bonitinha, mas Ordinária, com Odete Lara, filmes de Mazzaropi... São alguns que fazem parte dessas lembranças amarrotadas.
Depois de quase quarenta anos retornei a Jampruca em companhia do meu irmão Lalá. Aliás, o Lalá me lembra a cidade de minha infância. Segundo dizem, eu era um rebelde necessitado de uns corretivos. Ele era rigoroso nos castigos: colocava-me para rezar o terço sob ameaças de construir uma cabana no alto do morro, no meio da mata e me fazer morar lá; corria atrás de mim, a pedido de minha mãe, que queria me aplicar uma surra. O Lalá fazia muito teatro, mas nunca me bateu. Mas eu ficava apavorado com as encenações. Aliás, um sonho que não se realizou para o meu irmão, foi o de se tornar ator-comediante. Ainda hoje ele conta algumas piadas, imita o Mazzaropi, por sinal, muito bem.
Quando chegamos em Jampruca, fomos direto para o hotel. Tomamos banho, descansamos da viagem e, em seguida, fomos dar uma volta. Nossa primeira visita foi a cerâmica de Seu Aristides, que não fabrica mais telhas inglesas (não seriam francesas?), mas tijolos. As fornalhas fumegavam sob a queima de frondosos troncos de árvores. Fiquei pensando em desastre ambiental, em aquecimento global. Afugentei esses pensamentos, afinal, estava a passeio. Mas a ida à cerâmica foi um álibi para eu dar uma olhada no casqueiro, ver as prostitutas. Só então o Lalá percebeu o meu interesse. Fui informado de que ali agora moram "famílias de bem". Andamos pelas ruas, conversamos com as pessoas. Alguém nos disse que "o Seu Zé Pascoalim nunca foi esquecido". Pensei em sugerir que alguém, pedisse aos vereadores para apresentarem uma moção, um projeto de lei, alguma coisa em homenagem ao meu pai. Quem sabe, o nome de uma rua, de uma praça. Não sugeri. Tiramos fotos. A ponte do rio Itambacuri, que divide a cidade ao meio e criava uma rivalidade com os que "moravam do lado de lá contra os do lado de cá, decepcionou-me. Em minhas lembranças era uma ponte enorme. Agora estava ali diante de uma ponte de nada. É engraçado, mas da infância até a pré-adolescência temos uma visão ampliada das coisas. Tudo parece muito grande. Assim como a ponte, as coxas da negra Dona Geralda, ajudante de minha mãe, eram muito grossas. Hoje fico imaginando se não seriam uns cambitos. Também era enorme a ladeira que dá acesso à Igreja. Para o meu desencanto é quase plana.
Passeamos pela cidade e visitamos alguns velhos conhecidos. Tudo isso no primeiro dia. No seguinte pegamos a estrada empoeirada e fomos, à pé, a Boleirinha, o sítio, que para alguns era uma fazenda, local onde vários eventos marcaram a minha vida, como a lembrança do Odete, moça simples e educada, que também ajudava a minha mãe nas tarefas domésticas. Era considerada da família. Depois ela se casou com Aureliano, compadre do meu pai.
O Tó, posteriormente o Antenor foram vaqueiros de meu pai, dois trabalhadores honestos, que me trazem lembranças dolorosas. Por causa de minha arrogância de filho de patrão, o Antenor pediu demissão. Eles nunca souberam, mas chorei quando nos deixaram.
O córrego em que tomávamos banho e pescávamos secara. Tudo estava mudado: a casa em que passei a minha infância não existe mais; a casa de Seu Carlos e o terreiro, que em minhas lembranças eram enormes, desapareceram. Neste terreiro eu fui feliz jogando bola com o Juarez, Zé, Milton e Geraldo; conversando com Fábio, Pedro, Maria, Iria, Dona Jaíra; me diverti nas fogueiras de São João, comendo broa de fubá com café com leite; com as garotas roceiras em brincadeiras de passar aliança, ou à direita está vaga. Com elas manifestaram em mim as primeiras emoções vindas do coração.
Ao ver aquele ambiente despovoado, senti um aperto no peito, que passou logo. Afinal agora sou um adulto, com os pés na realidade. Tudo muda, tudo se transforma. A casa de Seu Tatão estava de pé, velha, protegida pela sombra da mangueira centenária. Como de pé estava o antigo mourão da porteira, que dá entrada ao sítio, embora sem a companhia da porteira e da zoeira das batidas e dos gritos das crianças, que nela empoleiravam. O pomar não existe mais, como não existe o curral, os abacateiros e o açude das tilápias. A lavoura de café onde o Carlos, meu irmão, armava arapucas, para pegar rolinhas e juritis e comê-las fritas, também não existe. A minha sensibilidade de defender o meio-ambiente se manifestara nesta época, quando eu destruía as arapucas armadas por ele. Carlos era impiedoso: algumas dezenas de rolinhas e juritis caíam nas armadilhas e ele pegava uma a uma, dando paulada em suas cabeças. Pobres pássaros. Eu me recusava comê-las Talvez por remorso de ter vitimado tantos pássaros foi o que o levou a formar-se em veterinária.
Nesse ambiente só se ouvia o silêncio de um passado distante. Confesso que o aperto no peito fora por conta da nostalgia. Não me surpreendi com a condição do local: tudo se transformara em capim de gado, em latifúndio. Naquelas terras férteis em que meu pai plantara de quase tudo: café, arroz, feijão, milho, laranja, abacaxi, abacate, mandioca e, principalmente amor, só restavam capim e silêncio. Ali que fora um reboliço de gente, de tropas e cantorias, só restava a desolação. O Dê e o Lalá chegaram a formar uma dupla caipira, compondo e cantando modas de viola. De repente, cansado e decepcionado, após tirar algumas fotos, chamei o padrinho e mano Lalá, para irmos embora, com a promessa de voltarmos em breve, de carro, para uma visita mais atenta.
Retornamos a Jampruca da mesma forma que viemos: à pé. O que me causou um tristeza de partir o coração foi ao passarmos pelas terras do João Gino e constar que o local onde existia uma mata de árvores esplêndidas, que exalavam perfumes e ofertavam sombras frescas e onde um riacho de águas cristalinas corria mansamente, matando a sede de gente e animais, proporcionando às pessoas um momento de repouso e meditação sob o pé da serra, fora devastada. Retornamos ao hotel. Lalá estranhou o meu silêncio repentino. No dia seguinte voltamos a Belo Horizonte. Durante a viagem de volta lembrei-me de um poema que havia escrito alguns anos antes:
Ele percorria os campos à procura de um vestígio.
De uma pequena referência que o fizesse voltar ao tempo.
A um longo tempo passado.
Observava a vegetação, os animais pastando e ouvia o canto das aves.
A batida de uma porteira.
Ouvia o trote de tropas imaginárias.
Galos cantando nos poleiros.
Buscava em cada som da natureza,
nas montanhas, nas planícies, nos açudes, nas trilhas, nas vertentes e
nos vales, uma lembrança.
Contudo, só sentia aquela sensação de vazio, de algo perdido.
De algo que a memória não conseguia trazer de volta
e que o coração descompassado teimava em buscar.
Em que esconderijo do tempo estaria o que ansiosamente buscava, para torná-lo em paz consigo?
Não conseguia vislumbrar a criança que amassara com os pés o barro da olaria.
Que percorrera as sombras frescas dos cafezais, desarmando arapucas.
O tronco onde costumava sentar-se apodrecera e era contra esse apodrecimento que lutava, para conter as palpitações do coração.
Como compreender essa sensação indelével que o dilacerava?
O curral desaparecera.
Desapareceram as tilápias do açude e o mugido do gado não era mais o mesmo.
Compreendeu então, que ele próprio mudara.
Que era preciso encontrar não o seu passado, mas o presente.
O novo homem que surgia...