Arão e Abrahão

Arão e Abrahão

Nasceram no mesmo dia, da mesma mãe. Gêmeos univitelinos, idênticos. Mais que idênticos, iguais. Arão e Abrahão se equiparam em tudo, desde o primeiro dia de vida. Começaram a engatinhar na mesma hora. A andar, a balbuciar as primeiras palavras, tudo no mesmo dia. E mantiveram, até hoje, as semelhanças: a voz, o sorriso, o franzir do cenho, os bigodinhos aparados. Tudo é igual.

A mãe, Maria Custódia, acostumou a vesti-los com roupas iguais.

Certa vez um deles caiu e rasgou a calça curta. A mãe fez um cerzido para cobrir a rasgadura. Mas teve que fazer o mesmo na calça do outro, embora não tenha sido rasgada. Frente a frente era como se estivessem num espelho. E aproveitavam-se da parecença para se divertir e ludibriar os outros. Eles lembram incontáveis traquinagens, confundindo as pessoas, valendo-se da incomum semelhança.

Arão e Abrahão cresceram garotos saudáveis. As travessuras da infância não deixaram marcas ou cicatrizes que pudessem ajudar a identificá-los. Aos dezoito anos foram convocados a servir ao Exército. Não foi possível que ficassem no mesmo batalhão, sequer na mesma cidade. Tiveram que transferir Arão para a Capital, pois os dois confundiam os superiores. E Exército é coisa séria, gente.

Quando começaram a namorar, os bailes permitiam que os rapazes solteiros dançassem apenas uma “marca”. Para dançar a segunda teriam que pagar. Os dois burlavam as regras e dançavam duas “marcas”. Quando inquiridos pelos controladores do clube, mentiam que era o outro que havia dançado e, assim, economizavam alguns tostões.

Certa vez Abrahão aprontou no Salão de Baile do Zé Domingo e colocou a culpa em Arão. Sem saber de nada, duas semanas depois, Arão foi lá dançar. E “dançou” mesmo, pois não o deixaram nem entrar no Salão. No baile seguinte, ele se vingou: entrou dizendo que era Abrahão e espalhou pó de mico. Saiu de fininho antes da coceira se espalhar. Daquela data em diante, ficaram os dois proibidos de frequentar os festeiros bailes do Zé Domingo.

Ambos traziam no sangue a veia musical. Formaram animada dupla de cancioneiros, que cantou e encantou por bastante tempo as redondezas. Só desfizeram a parceria depois de casados, quando passaram a residir em cidades diferentes. Mas, sem que um soubesse da escolha do outro, inscreveram-se para tocar nas bandas musicais das cidades onde moravam. Abrahão entrou na Sociedade Musical Gualberto Pereira, de Imbituba, e Arão na Banda Carlos Gomes, de Laguna. E os dois tocavam instrumento de sopro.

Parece até mentira, mas Arão teve oito filhos e Abrahão, o mesmo número de rebentos. Nenhum deles gêmeos, mas os primos se parecem bastante.

Um dos netos de Arão, quando estava com seus cinco ou seis anos, passeava de carro com o pai, a mãe e o avô. Numa das esquinas, cruzaram com Abrahão, que os fez estacionar e, apoiado na janela do carro, ficou proseando com o irmão, a cunhada e o sobrinho. Quando se despediram, o netinho saiu-se com uma frase preciosa, daquelas que só a genial ingenuidade das crianças é capaz:

- Eu tenho três “vô”: o “vô” Arão, o “vô” Lourenço e aquele homem – e apontou com o dedo para o Abrahão que seguia caminhando pela calçada.

Quando a Banda Gualberto Pereira, de Imbituba, foi a Laguna fazer uma apresentação num festival de bandinhas municipais, a confusão na cidade foi grande. O pessoal não conseguia compreender porquê do Arão, que morava ali na terra há tanto tempo, havia tocado seu instrumento na agremiação musical de outra cidade.

Naquele dia, os dois estavam tão parecidos em seus uniformes marciais que mesmo os filhos tiveram dificuldades para não confundir o pai com o tio. Não fosse um incidente no dia anterior, os filhos não os diferenciariam sob a farda engalanada, debaixo de barretinas que lhes cobriam as cabeças até a altura dos olhos e ainda possuíam um tirante que as prendiam sob o queixo, deixando apenas pequena parte do rosto à mostra. O imprevisto do dia anterior, fizera um corte profundo em um dos pés do Arão e o obrigara a usar uma sandália no pé esquerdo no lugar do coturno de praxe, foi o que salvou os filhos na hora de identificá-los. Porque, embora cobertos por polainas brancas, era possível notar as pontas dos dedos aparecendo. E a gurizada teve que andar de cabeça baixa, mirando a ponta dos dedos dos dois, para poder distinguir o pai e o tio.

Certa vez, Abrahão, em Imbituba, esperava o ônibus na rodovia para ir visitar o irmão, quando passou o carro do Padre Claudino Biz, pároco da Igreja Matriz de Laguna, e ofereceu carona ao que imaginava ser o Arão. Como Abrahão conhecia o padre, não se atrapalhou na conversa durante a viagem. Na entrada da cidade, já com a carona garantida, ele desvendou o equívoco. Padre Claudino pareceu reprovar a brincadeira e quando o deixou na frente da casa de Arão, saiu quase sem se despedir, amuado.

Passados alguns dias, Abrahão estava no centro de Laguna, esperando o ônibus para o Bairro Magalhães, onde morava o irmão. E por incrível que possa parecer mais uma coincidência, dessas que a vida dos dois está recheada: passou o Padre Claudino e parou o carro oferecendo carona. Assim que Abrahão entrou no carro, o padre lascou:

- Arão, semana passada confundi o seu irmão com você.

- É Padre Claudino, o senhor confundiu outra vez. Sou de novo o Abrahão precisando de carona, e não o Arão. O Padre duvidou, achando que estava, mais uma vez, sendo enganado. Foi preciso que Abrahão mostrasse a carteira de identidade para provar. E o Padre acabou dando boas risadas, brincando que eram tão semelhantes que até Deus seria capaz de confundi-los.

Arão e Abrahão trabalharam, desde moços até a aposentadoria, sempre nos portos de suas cidades, como conferentes de cargas.

Fiscalizavam o embarque e o desembarque de tudo que os navios levavam ou traziam. E foi num navio que aconteceu o fato mais inacreditável em consequência da semelhança entre os dois. O navio Orleans atracou no porto de Laguna, oriundo de Imbituba. Arão e os amigos conferentes, o João Dezoito, o Osvaldo Pua, o Orlando Guasca, estavam no cais no exato instante em que o navio atracou. Arão falou aos amigos:

- Estou achando que o Abrahão veio neste navio. Vamos ver?

- É possível, respondeu João Dezoito, enquanto abaixavam-se para observar pelo orifício do navio.

Arão, espiando pela vigia, enxergou o irmão e acenou. E disse aos amigos:

- Tinha certeza que ele viria. Coração de irmão não se engana, comentou envaidecido.

João Dezoito abaixou-se novamente e, espiando também pela vigia, falou com ar de dúvida:

- Arão, acho que não é o seu irmão, porque eu também estou me vendo lá do outro lado...

A vigia ficava bem em frente a um enorme espelho. Arão vira a si mesmo e se confundira com o irmão.

Foi difícil estancar as gargalhadas dos conferentes, que ainda ririam por muitos dias a cada vez que se lembravam da cena.

Aroldo Arão de Medeiros

23/12/2009

AROLDO A MEDEIROS
Enviado por AROLDO A MEDEIROS em 26/07/2024
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