Não pode, não pode

Para quem não conhece a Avenida Angélica na cidade de São Paulo, pois esse logradouro (como diz o povo dos correios) é onde está localizado a turma do dinheiro da cidade. Óbvio que não é somente nesta rua onde se abriga as pessoas mais ricas da cidade. Há muitos outros lugares. No entanto, o bairro de Higienópolis, do qual faz parte a Avenida Angélica, é um enclave encrustado no centro expandido da cidade. Neste bairro habita uma quantidade considerável de pessoas que dispõem de muito dinheiro. E há alguns com riquezas nababescas.

Estava subindo esta rua, pois é uma ladeira. É subida desde a Barra Funda, antes da Praça Marechal Deodoro até a Praça Marechal Cordeiro de Farias, entre a rua Minas Gerais e a rua da Consolação. Há muitas casas comerciais, no entanto, há uma grande presença de clínicas e laboratórios médicos de alto padrão de qualidade. E claro que há os edifícios de moradia das pessoas dos grupos economicamente mais privilegiados. Por vezes, nas portas desses edifícios encontram-se porteiros ou funcionários desses condomínios, limpando a calçada.

Contudo, sentada num canteiro, em frente a um desses conjuntos luxuosos, estava uma senhora por volta de seus setenta anos, cabelos todos grisalhos, com algumas sacolas em volta e falava consigo mesma e para o chão. Estava vestida normalmente. No entanto, era moradora de rua. Quando vejo que algum morador de rua está falando sozinho e não está num processo psíquico tão complexo que não iria entender o que falo nem aceitar e que pode interagir, eu converso com ele, dou bom dia, digo alguma coisa, pois percebi que muitos conversam sozinhos porque perderam todos os interlocutores, não tem com quem dialogar. E era o caso dessa senhora.

Cumprimentei, dei bom dia, e disse a ela que está certa, tudo o que ela estava dizendo ela tinha razão. Ela me respondeu com uma frase, com um sorriso, talvez alegre, um pouco de alegria por alguém tê-la visto, ter prestado atenção nela, ter se tornado interlocutor e ter dialogado com ela. Não sei há quanto tempo ela não tem um interlocutor.

Me respondeu, com um sorriso, porém sem olhar para mim. Estava feliz com um interlocutor, mas percebi um certo ensimesmamento e uma certa vergonha de estar na rua. No entanto, respondeu dessa forma:

- Não pode. Não pode.

Não sei o que ela quis dizer com essa frase. No entanto, eu interpretei assim. Não pode ela nessa idade estar morando na rua, nesta rua onde moram os muito ricos no Brasil, na cidade onde concentra a maior riqueza do país. Nada justifica esta senhora estar assim nessa situação. Se pensar que existe as organizações de assistência social da prefeitura, do estado e da união. Se pensar que existe as instituições privadas filantrópicas de acolhimento das pessoas e se pensar muito mais que vários desses super ricos tem relações e influência que pode intermediar assistência a esta senhora. Mais ainda se pensar que um pouco do dinheiro de um desses ricos, dos muitos que existem em Higienópolis, isto se pensarmos num pouco de dinheiro de um deles. Uma vez uma outra senhora da mesma idade desta senhora, estava na rua Angélica conversando com outra senhora e dizendo que foi ver um apartamento para comprar que custava cinco milhões de reais. Se alguém pode comprar um apartamento de cinco milhões de reais pode ajudar uma outra senhora moradora de rua.

A senhora tem razão. Não, não pode vivermos numa sociedade com um grau de barbarismo desse nível. Não pode, é inaceitável. É preciso mudar isso. Sei que muitos dirão que é muito difícil mudar isso. No entanto, o filósofo francês iluminista Voltaire escreveu que se um problema na sociedade não for resolvido é necessário falar dele constantemente. Freud transportou essa mesma ideia para a psicanálise em relação às considerações do inconsciente de cada um, o que é algo especificamente individual.

Sei que é muito difícil essa realidade mudar, no entanto, permitam-me dizer o óbvio. Não pode, não pode continuar essa sociedade na qual uma senhora idosa grisalha viva na calçada do lado de casas nababescas de pessoas super ricas. Não pode. Não pode. Faço coro com ela. Não pode. Não pode. Como vamos mudar isso? Temos que mudar porque não pode, não pode continuar assim.

Rodison Roberto Santos

São Paulo, 15 de julho de 2024.

Rodison Roberto Santos
Enviado por Rodison Roberto Santos em 25/07/2024
Código do texto: T8114162
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