Questão de descrer

Estive alguns dias ausente. Ausente não no sentido stricto sensu do termo, de sumir, este verbo impraticável após o advento do GPS. Mas no sentido da Cigarra de Esopo, ao passo que defendo uma "tese" um tanto questionável: a de que o trabalho danifica o homem. A forma como a formiga de Esopo valoriza o trabalho e a disciplina materialista com que o persegue não me representam, os números estão aí para provar.

Tenho mais de trinta anos, trabalho há mais de cinquenta, e estou longe da propagada independência financeira. Diz a Palavra que quem trabalha Deus ajuda, mas o fato é que a estatística e o mapa da fome vão de encontro ao provérbio bíblico. Basta ver a lista das pessoas financeiramente mais ricas do Brasil ou do mundo e notar que, dentre elas, não há formiga alguma.

Talvez algum dia mude essa minha opinião de que o que enobrece e enriquece o homem são, como os números evidenciam, os juros, os investimentos em commodities, a exploração do homem pelo homem, e não o trabalho. Até lá, porém, na minha condição de formiga, não posso deixar me enganar por discursos forjados, feitos sob medida para as formigas, ainda que revestidos em palavras sacras.

Estive, assim, alguns dias ausente. Não de mim completamente, não do mundo por inteiro, não do trabalho, especialmente, mas de certa preocupação com o inverno da fábula de Esopo.

Usei esse período para me transformar em um especialista não oficial em listas, em cigarras e um degustador profissional de comida de delivery. Ao final "ganhei" dez quilos de massa gorda, elaborei várias listas aleatórias sobre coisas aleatórias e cheguei à conclusão de que as cigarras não morrem quando param de gritar, e sim que depois de mortas elas não gritam mais, silenciam-se para sempre e além.

Aproveitei a ausência, ainda, para realizar grandes feitos: tipo decidir entre o próximo episódio de Naruto ou a louça; ouvir música estonteante ou assistir ao noticiário das 9h; reler um livro predileto ou redigir um protesto à superlotação nos presídios; contar até 1000 num engarrafamento no trânsito ou contar os carros ao redor, engarrafados; ser mais uma formiga comum, em mais um dia comum, seguindo o fluxo comum no mundo incomum ou ser a despretensiosa, a despreocupada, a hedonista, a impulsiva cigarra de Esopo, e viver o verão, ainda que no inverno.

Como se observa, é tudo questão de descrer.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 20/07/2024
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