Entre Sem Bater - A Arte de ser um Iconoclasta
Salman Rushdie disse:
"... o pensamento original, a expressão artística original são, por sua própria natureza, questionadores, irreverentes, iconoclastas ..."(1)
A vida pessoal de algumas celebridades pode ter reviravoltas surpreendentes e até mesmo imprevisíveis. Escrever sobre a realidade, fantasia(2), ficção e história não é uma tarefa fácil e exige, outrossim, muito mais dos leitores. Esta condição de ser um iconoclasta, como Rushdie(*) e ao mesmo tempo ser cético e questionador não é admissível pela maioria das pessoas. Desse modo, a frase-chave deste texto deveria provocar questionamentos, críticas e mais reflexão.
UM ICONOCLASTA
A iconoclastia é uma posição que as pessoas estão praticando atualmente e nem se dão conta. Se, anteriormente, séculos atrás, era somente uma questão de ligações às religiões, crenças e mitos, hoje em dia, tornou-se viral. Surpreendentemente, a maioria das pessoas que pratica não tem a mínima noção do que o termo significa e muito menos das causas e efeitos. É, por exemplo, algo análogo a atacar as campanhas de vacinação sem ao menos estudar a história da humanidade(3) e as epidemias ou doenças.
É muita insanidade que agrava-se, com toda a certeza, neste mundo de redes sociais com superficialidade e uma iconoclastia extrema.
ICONOCLASTIA
A iconoclastia, historicamente, referia-se ao ato de desafiar ou destruir ícones e crenças de dogmas e religiões. Tinha como praticantes aqueles que questionavam e resistiam às autoridades religiosas ou políticas de seu tempo. Um iconoclasta original era, portanto, um indivíduo corajoso, que se opunha a estruturas de poder em busca de mudanças significativas. Em contraste, um iconólatra, ou idólatra, era aquele que venerava ou adorava ícones, figuras, mitos ou instituições tradicionais. Desse modo, não é surpresa que com o advento das redes sociais, essas definições tradicionais de iconoclastia e idolatria mudaram drasticamente.
E, com toda a certeza, não foi para melhor ou com definições e clareza necessárias; o novo palco não tem limites.
UM NOVO PALCO DOS ICONOCLASTAS E DA IDOLATRIA
As redes sociais permitem que qualquer pessoa com uma conexão à Internet compartilhe suas opiniões e alcance um público global. Esta nova dinâmica criou um ambiente onde influenciadores e subcelebridades emergem e caem rapidamente.
Assim sendo, muitas vezes com base em conteúdo provocador ou controverso alguém sobe ou desce na mitologia. Por exemplo, uma subcelebridade, participante do abjeto BBB Brasil, Nego Di, mostrou sua verdadeira face de mito de barro. Desta forma, a iconoclastia moderna se manifesta nos ataques frequentes a figuras públicas, instituições e crenças tradicionais.
E, inquestionavelmente, a figura do iconoclasta não tem a compreensão dos seguidores de mitos e outros ídolos de barro.
O ICONOCLASTA MODERNO
O iconoclasta das redes sociais raramente se move por algum desejo profundo de mudança ou justiça social. Esse comportamento tem, sem dúvida, motivações como a busca de visibilidade, validação ou apenas entretenimento pueril. A facilidade com que se pode criticar ou "cancelar" alguém online criou uma cultura onde a destruição de reputações. Por outro lado, na maioria dos casos, essa prática comum tem incentivos financeiros e não ideológicos. Desse modo, tanto o iconoclasta como o iconólatra modernos não possuem relação com nada anterior às mídias e redes digitais.
A SUPERFICIALIDADE DA CRÍTICA
Ao contrário dos iconoclastas históricos, que enfrentavam consequências severas por suas ações, os iconoclastas modernos são irresponsáveis. Frequentemente, eles operam com um anonimato relativo e sem enfrentar consequências e repercussões significativas. Essa falta de responsabilidade leva a uma crítica superficial, onde o objetivo é mais chocar e entreter do que fomentar um debate construtivo.
A crítica, raramente possui um contexto ou fundamentação, e foca em aspectos triviais, na forma ou distorcendo fatos para obter maior engajamento.
CONSEQUÊNCIAS PERVERSAS
As consequências destas mudanças no mundo digital são perversas e, muitas vezes, com aceitação das bolhas e grupos de confirmação. Outrossim, provocam efeitos que para uns é admissível e para outros recriminável. E, assim sendo, caminha a humanidade no paraíso da superficialidade, estultice e formação de guetos informacionais. Experimentem, por exemplo, entrar num grupo de defensores de criptomoedas como o Bitcoin e dizer que desconfiam do modelo. Com toda a certeza, se não for expulso do grupo sofrerá uma série de agressões dos iconoclastas criptomaníacos.
Algumas consequências bastante claras que podemos referenciar, devem ter a observação atenta de todo iconoclasta consciente.
EROSÂO DE CONFIANÇA
Uma das consequências mais graves dessa iconoclastia sem limites é a erosão da confiança nas instituições e figuras públicas. Quando a crítica constante e destrutiva se torna a norma, a sociedade começa a perder fé em seus líderes e nas estruturas da sociedade. Isso pode levar a um cinismo e hipocrisia geral, onde tudo e todos são suspeitos. Desta forma, a governança e a implementação de políticas públicas eficazes torna-se alvo de muitas críticas e suposições.
CULTURA DO CANCELAMENTO
A cultura do cancelamento é um fenômeno emblemático da iconoclastia moderna. Indivíduos sofrem, publicamente, humilhação e boicote por ações ou declarações, sem nenhuma consideração do contexto. Esse comportamento não apenas destrói reputações, mas também cria um ambiente de medo. As pessoas hesitam em expressar suas opiniões ou tomar decisões, sobretudo pela possibilidade de interpretações errôneas.
POLARIZAÇÃO SOCIAL
A iconoclastia nas redes sociais contribui, surpreendentemente, para uma polarização irracional de toda a sociedade. A natureza binária da interação online – onde se é a favor ou contra algo, sem espaço para nuances, prevalece. Como se não bastasse, recrudesce as divisões das ideias e cria um ambiente propício ao conflito. Os algoritmos das redes sociais amplificam esse efeito, promovendo conteúdos que geram reações emocionais mais fortes. Por isso, a busca por mais engajamento e aceitação tornou-se uma grande forma de diferenciação nas pessoas.
INFLUENCIADORES E SUBCELEBRIDADES
Nesse ínterim, emerge a figura dos influenciadores e das subcelebridades que, frequentemente, são os protagonistas dessa nova forma de iconoclastia. Em busca de relevância e seguidores, adotam uma postura crítica e provocadora, atacando figuras e instituições até então dignas de credibilidade. Embora alguns possam argumentar que estão desempenhando um papel de vigilância social não passam de iconoclastas do clickbait(4). Utilizam, com toda a certeza, da falta de rigor e da irresponsabilidade que provoca ataques injustificáveis, desinformação e ignorância.
A popularidade dos influenciadores e subcelebridades cria um efeito de cascata, onde seguidores imitam seus comportamentos e atitudes. Quando a iconoclastia superficial obtém a glória, os seguidores adotam essa mesma abordagem, perpetuando a crítica destrutiva e superficial. Por isso, os efeitos negativos não estão apenas na esfera pública, mas também atingem em cheio as interações pessoais e profissionais.
Mas, parafraseando algum político, "... cada iconoclasta-fake tem um mito ou ídolo que merece ..."
PERDEMOS !
Em suma, o advento das redes sociais transformou profundamente a iconoclastia que não existe caminho de volta. É como uma crítica que recebi a pouco tempo de uma leitora: "... não brigue com as gerações mais novas pois você não os entendeu ...".
Certamente esta leitora não conseguiu entender muita coisa do que escrevi. É provável que ela defenda a ideia de que democratizando a crítica permite-se que qualquer pessoa se torne um "iconoclasta" moderno. Essa transformação da sociedade trouxe, no entanto, consequências perversas. Os Influenciadores e as subcelebridades, que desempenham um papel central nesse novo paradigma, são responsáveis por muitas crueldades. Entretanto, seus seguidores e idólatras é que tem uma responsabilidade objetiva na manutenção destes ídolos.
COM COMBATE
Combater a iconoclastia inconsciente nas redes sociais requer esforços individuais e coletivos.
Aqui estão algumas ações estratégicas incluem:
1. Autoconsciência
2. Critério na escolha de influenciadores
3. Educação digital
4. Promoção do pensamento crítico
5. Conscientização coletiva
6. Responsabilidade das organizações e plataformas
Certamente, a mudança começa individualmente, mas seu impacto se multiplica nos compartilhamentos. Sejamos conscientes, transparentes e responsáveis em nossa jornada digital.
Enfim, para tentar mitigar esses efeitos, é crucial promover uma cultura de crítica construtiva e responsável. Devemos, por exemplo, valorizar o debate, por mais difícil que seja. Adicionalmente, se eximir, omitir-se ou mostrar imparcialidade em tudo, para não criar conflitos, é uma arrogância covarde ou indigência cognitiva.
Em suma, a ascensão do iconoclasta moderno e as consequências imprevisíveis e nefastas ainda nem começaram realmente. E, acreditem, mesmo que pareça que estamos perdendo tempo, debater com estultos pode nos ensinar alguma coisa.
"Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) É provável que a totalidade dos leitores deste texto vejam Rushdie somente como autor de "Versos Satânicos", o que é lamentável.
(1) "Entre Sem Bater - Salman Rushdie - A Arte de ser um Iconoclasta" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/07/18/entre-sem-bater-salman-rushdie-a-arte-de-ser-um-iconoclasta/
(2) "Entre Sem Bater - Edward Snowden - Fantasia e Realidade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/08/entre-sem-bater-edward-snowden-fantasia-e-realidade/
(3) "Entre Sem Bater - Nélson Mandela - Crimes Contra a Humanidade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/07/15/entre-sem-bater-nelson-mandela-crimes-contra-a-humanidade/
(4) "Entre Sem Bater - Cathy O´Neil - O Clickbait" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2023/10/28/entre-sem-bater-cathy-oneil-o-clickbait/