Febre-lembrança

São 3:40 da manhã. Eu continuo doente. Há uma coisa engraçada sobre o nosso corpo. Ele, quando se sente ameaçado, eleva sua temperatura até que o ser humano habitante seja fornalha humana. Desse jeito, acha, vai matar o que o mata. Ontem tive sonhos muito sangrentos, senti muito medo. Senti medo porque não conseguia ir embora deles. Mesmo no sonho, dentro daquela historinha que escapava do meu controle, eu sabia que sentia medo. Vi minha mãe hoje. Ela me olhou com graça e ternura, aquela que é própria das mães, e aí eu soube que, mesmo morto, eu ainda estava vivo. Vez ou outra penso sobre meus irmãozinhos sucedidos. Será que ela também pensa sobre eles? Também ajudei meus amigos hoje. Ajudei fazendo o que eu aprendi a fazer: ouvindo e pensando. Às vezes, falar parece perder a eficácia, é como uma pedra raspando em outra pedra maior, um eco seco e parado. Meu pai falou comigo ontem. É engraçado, me tranquiliza um pouco perceber que os adultos não têm a menor ideia do que precisa ser feito do futuro. Sim, estou me pondo fora disso. Fora dessa existência concreta e pegajosa da maioridade. Um adulto é uma criança que morreu. Não sou adulto, sou um bicho malforme, livre. Eu estava tomando banho quando lembrei em um susto, como se na minha cabeça aparecesse um raio e depois uma luz. A água escorria em mim e eu lembrei do amiguinho que eu tinha, aquele único, que se desgarrava do resto, vinha até mim, brincava e falava coisas de criança. Ele fazia isso unicamente por querer. Isso me deixava bastante feliz, fascinado. Eu tinha vontade de lhe abrir a cabeça e saber que brilho diferenciado ele tinha, queria me ver com os seus olhos. Quer dizer, eu sempre fui um garoto que via, que escutava, um farol de sombras na parede. Me bastava sempre. E então, assim, sem mais nem menos, eu tinha um amigo. Num mínimo esforço de sopro, de um sim. Quando estávamos um perto do outro aqueles minutos envelheciam bem rápido, esfriavam como uma bola de luz, um bolo comido ainda quente. Uma sensação que nunca existe para ficar, mas nasce para ir embora. Pensávamos na próxima brincadeira e logo a coisa se desfazia, o sinal tocava. Eu era levado nos braços, meu corpinho compacto, nunca andante, via tudo desaparecer e aparecer de novo. Achei interessante isso ter voltado agora. No meu sonho, esse que comentei, acho que senti medo porque tinha de novo essa coisa no ar, uma atmosfera aterradora, de algo prestes a acabar, ou pior, de nunca começar. Pensar nesse amigo me deixa um pouco triste, nossa vida um do outro se apoiava naqueles minutos feitos de nada, hoje tudo se separou, hoje nem lembro mais do seu rosto. Não lembro nem o dia em que o esqueci. Acho que da mesma maneira em que surgiu e se desagregou de um amontoado de outros pra ser comigo, ele então retornou.

Preciso dormir, sinto febre.