O Terceiro Médico
Diferentemente do que muita gente pensa, o inferno pode ser o local onde tem de tudo, menos o diabo e o fogo. Graças à literatura, podemos imaginar o inferno com uma configuração muito distinta daquilo que o cristianismo prega.
O escritor irlandês Brian O’Nolan usou seu talento literário para elaborar um original post mortem. Na sua obra “O Terceiro Tira” (1967), o protagonista comete um crime horrendo, morre e vai parar num inferno onde há personagens e cenários nonsenses. O intrigante, no entanto, é que as situações estranhas e ruins que acontecem com ele sempre se repetem. Nota-se aí uma característica observada em qualquer inferno: a eternidade. Mas uma diferença fundamental é a repetição dos acontecimentos.
Posto isso, revelo ao raro leitor que estou numa situação que me faz cogitar a possibilidade de estar em um inferno repetitivo e eterno.
Há meses, entrei em contato com uma clínica que me atende regularmente. O objetivo maior das minhas visitas é pegar uma receita amarela. Como as agendas dos médicos desse estabelecimento são lotadas, eu costumo esperar, no mínimo, um mês para ser atendido. Sempre foi assim e, apesar de alguns incômodos, eu acabo conseguindo a receita. Contudo, desta vez a situação mudou um pouco.
Eu havia marcado para o início do mês seguinte quando recebi uma ligação da clínica:
- Doutor Fulano de Tal não vai poder te atender no dia marcado. Podemos marcar outra data?
- É claro! Por favor remarque.
- Tudo bem. A próxima consulta é daqui a 47 dias.
- 47 DIAS!?
- Sim, senhor.
- Mas eu preciso pegar as receitas. O remédio está acabando.
- …
Dei meu jeito. Tentei economizar a medicação para que durasse tempo suficiente até a próxima consulta, mesmo que houvesse o risco de ficar disfuncional.
Os 47 dias se passaram. Vou à clínica. Minha vez chega e vou à sala do médico. Depois dos cumprimentos “protocolares”, ele me dá a má notícia:
- Infelizmente, a receita amarela acabou ontem.
Desabafei, naturalmente.
- Eu esperei 47 dias para isso? - perguntei.
O médico levantou as mãos de tal maneira, como se dissesse: “não tenho nada a ver com isso!”.
Conversei com as recepcionistas, perguntei quando a receita amarela chegaria. Disseram-me o dia. Pedi que me encaixassem em algum horário no dia em que a receita estaria disponível. Com muita paciência e conversa, consegui convencê-las.
Na semana seguinte, fui à clínica e peguei a receita.
Então, dias depois, marquei novamente uma consulta. Para o início do mês seguinte. E então veio a temida ligação:
- Infelizmente, por motivos de “força maior”, a doutora Ciclana não vai poder te atender no dia agendado. Podemos remarcá-lo?
- Sim, por favor.
- Sua próxima consulta será daqui a 45 dias!
- Meu Deus do céu!
Mais uma vez, tive que me virar. E quando o tempo passou e o dia da consulta chegou, o leitor já pode imaginar o desfecho.
- Não temos receita amarela - disse a médica.
Mais uma vez, conversa e paciência com as atendentes da recepção. E na semana seguinte, fui à clínica num horário “extra” em que me encaixaram. Consigo pegar a receita.
Dias depois, eu ligo e marco outra consulta, a atendente agenda para o início do mês seguinte…
Bom, o leitor já sacou o que vai ocorrer. Talvez eu tenha tido um destino parecido com o do protagonista de “O Terceiro Tira”. Só não me perguntem o que eu fiz para merecer isso, pois não faço a menor ideia.
Inspirei-me nesse romance para escrever esta crônica, mas diferentemente de O’Nolan, que mostra o “terceiro tira” - personagem que dá nome ao livro -, vou poupar o leitor do “terceiro médico”, a pessoa que me atenderia pela terceira vez seguida no inferno das clínicas.