O homem de Mercúrio
Cruzo com o meu amigo Águia Negra na Praça XV de Novembro, em pleno Boulevard dos Tamarindos.
Mas já o tinha visto de longe, rumo à estação de trem, com algo estranho na cabeça que me parecera não uma bacia de barbeiro ou o famoso elmo de Mambrino (o que não seria de espantar, vindo de personagem tão quixotesco em Marechal Hermes), mas um turbante branco de pai-pequeno nagô, saravá. O cara tem peito, pensei comigo, esperando apenas a ocasião de estarmos frente a frente para poder interrogá-lo sobre isso.
Não, não era um turbante.
Agora, que nos cumprimentávamos, percebi que Águia Negra usava no coco raspado a metade do couro vazio de uma bola de futebol. Bola branca. E repintara os gomos, deixando-os branquíssimos. No gomo que lhe protegia a testa desenhara com tinta preta os dizeres:
MERCÚRIO
2025
AB + 51,
o que não significava coisa alguma para ninguém.
Permitir que ele reparasse em minha curiosidade seria a maior tolice do mundo — o homem se despejaria numa torrente de explicações descabidas, alugando-me a atenção pelo resto da tarde. Bem, não podia dar outra: eu estava curioso, o cronista dentro de mim estava curioso, e dois camelôs ali perto, que nos observavam com estranheza, também estavam curiosos.
Vai aqui o resumo do resumo do que ele me contou, pois não tenho a coragem de torrar o saco dos visitantes do meu Galho de Arruda com a extensa oração aos tolos do velho tipógrafo da Aeronáutica.
Levantando o fura-bolo direito para o céu, digamos que Águia Negra tenha dito o seguinte, no essencial:
"Sou de Mercúrio. Ou melhor, atualmente moro no planeta Mercúrio, e lá já estamos no ano 2025, bobos de ver como os terráqueos conseguiram ficar mais quentes do que nós. AB é o meu tipo sangüíneo, 51, a cachaça que eu gosto de beber."
Não tenho como refutá-lo. Forçando um pouco, poderia até garantir que ele bebe muito bem da marca de caninha que lhe pagam, mas esse pelo menos contenta-se com Mercúrio e por isso mesmo não vive no mundo da lua.
[10.1.2008]