Entre Sem Bater - A Virtude
François de La Rochefoucauld disse:
"... hipocrisia é a homenagem que o vício presta à virtude ..."(1)
Francis VI é um dos muitos personagens da Idade das Trevas que, surpreendentemente, contribuíram para iluminar a humanidade(2). Se esta ideia é uma verdade, e é necessário coragem para escrever isso, certamente vivemos em ondas em que as trevas atingem picos. A família de Francis VI era de nobres, ligados às ideias calvinistas e protestantistas. Desse modo, ele e seus familiares estavam ligados à ideias revolucionárias e envolvidos em eventos históricos da França, o que é uma virtude.
VIRTUDE
Em primeiro lugar, é necessário pensar na frase de Rochefoucauld que contém quatro termos chave: Hipocrisia, homenagem, vício e virtude. Posteriormente, é essencial imaginar o contexto em que a frase teve sua criação e propagação(*). Assim sendo, após esta etapa de compreensão, pulamos alguns séculos e saímos do mundo medieval, sem tecnologia, para o mesmo mundo medical. Entretanto, agora a tecnologia dá a ilusão de modernidade e evolução, mas deturpa até a ideia do que é a virtude.
A palavra virtude é uma derivação do latim "virtus, utis", que transmite a ideia de "força do corpo". Contudo, a maioria de suas acepções apresentam características que designam um comportamento bom de um ser humano. Por outro lado, o vício (antônimo) e a hipocrisia dizimam tudo. Dizer que a hipocrisia é uma homenagem à virtude chega a ser um sacrilégio.
Após estes prolegômenos é possível entender que o pensamento de Rochefoucauld, atualmente, pode ter uma interpretação literal. E é provável que, alguns personagens e perfis nas redes sociais, realmente pensem que a hipocrisia é uma virtude.
HIPOCRISIA
Em tempos de redes sociais e um mundo dominado por aparências, a hipocrisia, paradoxalmente, adquire um status de virtude. Esta distorção moral surge do ambiente digital que incentiva a exibição de uma vida ideal. Enquanto isso, oculta, com toda a certeza, a realidade imperfeita e complexa dos indivíduos.
Assim, a hipocrisia(3), que tradicionalmente seria um defeito moral, transforma-se em uma habilidade de sobrevivência neste novo cenário social.
Nas redes sociais, recebemos um bombardeio de imagens e relatos de vidas aparentemente perfeitas. Fotos com muita edição, algumas bem toscas, conquistas profissionais e pessoais, e um constante fluxo de positividade que criam ilusões. Esse ambiente promove a ideia de que mostrar qualquer fraqueza ou falha é inaceitável, pressionando os indivíduos a manterem imagens irreais. Nesse contexto, a hipocrisia - a dissimulação entre o que é, e o que aparenta ser - torna-se uma trampolim para a aceitação social e a validação.
VIDA PERFEITA
Os aspectos da verdadeira virtude deram lugar a, por exemplo, o fenômeno da comparação social no mundo digital. Ver a vida "perfeita" dos outros pode gerar sentimentos de inadequação e inveja e é, atualmente, o retrato da sociedade em vertigem(4). Para combater esses sentimentos, muitas pessoas recorrem à hipocrisia, tentando projetar uma imagem que se iguale ou supere aquelas que observam. A autenticidade, um valor que alinha-se à virtude, perde espaço para performances e aparências.
A hipocrisia também se manifesta nas práticas comerciais e políticas com representações e teatralizações nas redes sociais. Marcas e figuras públicas adotam posturas e discursos com causas sociais populares, mas não necessariamente uma crença genuína. Visam, inquestionavelmente, ganhar aprovação, compartilhamentos e lucro.
Essa prática (sinalização de virtude) é um exemplo claro de uma homenagem e recompensa ao vício e engano(5). Empresas anunciam seu compromisso com a sustentabilidade enquanto mantêm práticas internas e externas insustentáveis. Ou, por exemplo, políticos declaram-se defensores de direitos enquanto promovem políticas em direção oposta. A hipocrisia, nesse caso, ultrapassa os limites da tolerância e ganha ares de cumplicidade, como uma estratégia de marketing e poder.
CICLOS VICIOSOS
Essa dissonância entre aparência e realidade gera um ciclo vicioso em que a virtude ou seus sinônimos são escassos. À medida que mais pessoas adotam qualquer vício, para se adequar às expectativas sociais, a virtude fica inatingível. A pressão para manter a aparência de virtude, sucesso e felicidade cresce, perpetuando a necessidade da falsidade e superficialidade.
Além disso, as redes sociais facilitam a vigilância mútua e o julgamento rápido, sobretudo das pessoas, sem debate de ideias. Qualquer deslize ou demonstração de vulnerabilidade críticas severas. Esse ambiente de constante avaliação e crítica se retroalimenta, favorecendo formas de proteção e sobrevivência social aéticas e amorais.
CULTURA DO CANCELAMENTO
Surpreendentemente, alguns comportamentos, execráveis anteriormente, tornaram-se comuns e aceitáveis em bolhas de confirmação. Um ambiente cheio de vícios encontra um terreno fértil na cultura do cancelamento ou da segregação. Esta prática, que pune socialmente aqueles que cometem erros ou expressam opiniões impopulares, cria um clima de medo. Para evitar o cancelamento, muitos adotam uma postura hipócrita, expressando opiniões em alinhamento com o consenso popular. Esse comportamento, embora proteja o indivíduo da reprovação social, enfraquece, sem dúvida, a ideia de honestidade. Em outras palavras, enfraquece uma virtude essencial para qualquer sociedade racionalmente saudável.
A dissonância entre a vida real e a vida projetada nas redes sociais leva a problemas de saúde mental, como ansiedade e depressão. A constante necessidade de validação externa e proteção ao cancelamento é exaustiva e alienante.
ROMPENDO COM O SISTEMA
Desse modo, para romper com esse ciclo, é necessário resgatar a importância da autenticidade e e outros comportamentos virtuosos. Mostrar-se como realmente se é, com falhas e imperfeições, pode ser um ato de coragem e resistência contra a cultura dos vícios. As redes sociais poderiam ser plataformas para promover a transparência e a honestidade, valorizando a realidade. #SQN
Além disso, é essencial questionar as narrativas de sucesso e felicidade nas redes sociais. Entender que essas versões constroem-se para ajudar a reduzir a pressão para se conformar a um padrão irreal. É provável que promover uma cultura de empatia e compreensão, onde erros e vulnerabilidades tenham aceitação, é mais complexo. Contudo, estas ações e pequenas demonstrações da virtude, farão diminuir a necessidade de hipocrisia e do vício.
Enfim, a hipocrisia e outros tantos vícios que, aparentemente, tornaram-se uma virtude em tempos de redes sociais, nunca o serão. Em um mundo de aparências, resgatar a autenticidade e a vulnerabilidade é, certamente, o caminho para mudar a sociedade.
Pensamento sobre a virtude que predomina atualmente:
"... as pessoas criam regras que não cumprem, impõem comportamentos que não têm, esperam o respeito que não dão, e ditam princípios que não seguem ...".
É a realidade, nua e crua, do mundo digital que mais se parece uma Idade das Trevas de pensamentos.
"Amanhã tem mais ..."
P. S.
(*) Rochefoucauld viveu no Século XVII, mais de cem anos antes da Revolução Francesa. Possuía título nobiliárquico e ter pensamentos revolucionários contra o sistema era como pedir alguma sentença capital.
(1) "Entre Sem Bater - François de La Rochefoucauld - A Virtude" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/07/16/entre-sem-bater-francois-de-la-rochefoucauld-a-virtude/
(2) "Entre Sem bater - Nélson Mandela - Crimes contra a humanidade" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/07/15/entre-sem-bater-nelson-mandela-crimes-contra-a-humanidade/
(3) "Hipocrisia no Comando" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2016/03/28/hipocrisia-no-comando/
(4) "Entre Sem Bater - Paulo Freire - Sociedade em Vertigem" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/07/12/entre-sem-bater-paulo-freire-sociedade-em-vertigem/
(5) "Entre Sem bater - Jacques Abbadie - A Lei do Engano" em https://evandrooliveira.pro.br/wp/2024/05/09/entre-sem-bater-jacques-abbadie-lei-do-engano/