NÃO SOU MENINA

O local era para pagar aviamentos em um armarinho, tipo de loja que já está quase deixando de existir por conta de que o “admirável mundo novo” não quer consertar mais nada, e coloca quase como coisa inútil o trabalho artesanal. Este último ganha uma certa projeção por conta das propostas de inclusão do artesão empreendedor. Mas, sem dúvida que armarinho já é tido como anacrônico.

Em uma fila para o caixa, estavam uma senhora bem idosa, com bengala e corpo curvado. À frente de outra talvez sessentona, logo veio uma velha, dinâmica e nos trinques. A primeira olhou para a terceira e falou: “Ah! Chegou outra menina!”

Estavam num ambiente ideal para surgir o diálogo entre as três velhas de diferentes idades. A que chegou foi logo respondendo: “Não somos meninas. Temos de resgatar o nosso conhecimento e a nossa vivência.” A mais velha retrucou: “É mesmo tem gente que fez universidade. Mas não sabe mexer em máquina.” A outra menos idosa falou: “Mas tudo nós fazíamos com as mãos e nisto somos melhores.” A mais intelectualizada rebateu: “Se não sabemos usar máquina, podemos aprender. O importante é que temos toda a vida pra viver. É vida e mais vida até morrer”. As duas ficaram intimidadas e resolveram se calar.

O que podemos dizer destes contatos cotidianos nas grandes cidades? Que os velhos estão passando por um processo de mais idiotização. Por que? Porque o povo brasileiro quase todos com péssima instrução e sem capacidade de arguir e ter senso crítico vão ficando velhos e cada vez mais enfiam a carapuça, e se assumem com qualquer rótulo que queiram dar a eles. Esta é a realidade da maioria do povo brasileiro. Não são só os velhos.

Mas, falta a esta parcela envelhecida uma proposta política transformadora de seu papel e função sociais trazendo-lhes a certeza de que são pessoas que tem o direito e o dever de lutar contra todas as formas de preconceito, contra os outros que os consideram inúteis e os exploram, contra o “etarismo” que especifica os vários tipos de discriminação a que estão sujeitos. Para as maiorias, os velhos não têm direito a sexo, todos são gagás/idiotas, inúteis, sem conexão com a modernidade. Devem ficar distantes em suas casas, medicados e sem perturbar o cotidiano familiar. É de praxe, tratá-los como “velhinhos carentes”, “meninas” tirando-lhes toda a possibilidade de lutar por uma vida saudável, inteligente e amorosa que deve ser usufruída por todos que ainda dispõem de sanidade física e mental.

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 16/07/2024
Código do texto: T8107907
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