QUE É DO ARTIGO QUE PENSEI ESCREVER?
Aquietando-me diante do computador, a tela em branco me olhando curiosa e divertida, o som ligado num volume quase murmurante, as horas passando lentamente como se o tempo estivesse moribundo, ouço um repentino e nada esperado choro infantil alhures, tirando-me a concentração. Ótimo, graças a Deus por durar o mínimo. Talvez a criança chorasse com fome e a mãe lhe tenha dado o peito para acalmá-la. Assim, logo o silêncio recai em derredor, descontado, é óbvio, o leve sibilar de uma música sem graça integrando-se à solidão do meu ambiente. Então fico a observar o teclado com seus números e suas letras aguardando o meu toque para que se unam nalgum texto coerente, nalguma forma concreta para os olhos. Mas as células cinzentas parecem dormitar na preguiça, escondem-se para não exercer o seu mister. O vazio é completo e assustador, a escuridão criadora, destarte, transforma-se num pântano sem entrada ou saída, e permaneço num charco de inércia indescritível.
Um repentino movimento atrai meu olhar, desconcentrando-me, desviando-me dos meus devaneios. Arrepiado, arrebatado pelo asco, descubro uma asquerosa barata saracoteando ao redor dos meus pés, arrastando-se como uma mensageira de horrendos pesadelos. Ao lançar-lhe o olhar verifiquei que ela já tentava, toda lépida e fagueira, subir na minha chinela não sei com que funesto intuito. A princípio, cheguei a pensar em sapecar-lhe um tremendo safanão com qualquer coisa que estivesse à mão, gritar-lhe impropérios, mas temi não ser ágil o suficiente para tanto. Então, apesar do nojo, busquei calmamente faze-la desistir do seu intento de alcançar o meu pé fazendo movimentos suaves de maneira que ela nem percebesse que estava sendo vista por mim. Mas ela, matreira como ninguém, antenada certamente, de súbito disparou numa desabalada carreira no rumo da porta e me atarantou. Logo, porém, voltei à serenidade e agarrei um objeto qualquer que vi ao lado do computador – descobri depois tratar-se de uma bola de meia que eu fizera relembrando minha infância – e, certeiro como eu jamais esperei ser, acertei a nojenta em plena corrida. Ela escangotou-se toda e virou de patas para o ar, lá permanecendo trêmula, nas vascas da morte, creio. Um batalhão de formigas logo se aproximou para o banquete, que eu interrompi pressuroso levando a pulguenta para o lixo numa velha pá que achei em algum lugar.
Não mais que de repente, romântico impagável que sou, direciono minha atenção para a melodia que exalta o amor e inebrio-me – ah, o amor!, esse sentimento complexo e profundo enfronhado nos nossos corações a deitar e reinar com uma superioridade à qual ninguém resiste. Se mais sensível eu fosse, a grandeza do amor expressada na letra da bela música ter-me-ia levado às lágrimas e orvalhado as minhas faces enquanto a noite se ia lentamente. Pensei então, perplexo comigo mesmo, me indagando como pode alguém por fim à vida de uma barata nojenta e, a seguir, ser tocado em profundidade pelo encanto musical de uma canção cheia de ternura, a ponto de ficar na iminência de ceder ao choro silencioso? Controvertida condição humana, pode-se dizer. Mas, convenhamos, uma barata asquerosa dá nojo a qualquer um e precisa ser exterminada em todas as circunstâncias, enquanto uma melodia encantadora é algo a ser degustado com o coração escancarado às emoções.
Já então a noite avança inexorável. Grilos cricrilam nas imediações, a luz do abajur se torna baça não sei por que cargas dágua, duas motos barulhentas passam em arrogante disparada, certamente disputando corrida lá fora, e torram a paciência. Meus olhos teimam em semicerrar-se a pouco e pouco, a emissora sintonizada sai do ar e eu percebo o inacabado artigo com cara de pobrezinho desvalido como que a pedir socorro para ser concluído. Enrubesço.