Quarentenária

Depois de vinte e muitos dias, inteirinhos, sem ver vivalma..., revisando e aprimorando textos, como um bom perfeccionista que sou..., acabou a comida!

Hora de tirar a tranca da porta!

Me resguardar em isolamento, é uma maneira de ser um escritor, que se não lido, mas, ao menos, produtivo.

Me insular do mundo real e cair na fantasia, me faz sentir mais “escritor!”

Van Gogh pintou centenas de telas, mas só depois de morto conseguiu vender..., espero que não seja igual, essas coisitas que escrevo.

Tenho prazer de fugir da banalidade do mundo e me enfurnar em um reduto – tal como outros muitos artistas. Escrevo, reviso, leio outros autores..., depois, exausto, faço afagos nos meus filhotinhos!

Quem gaba o toco é a coruja!

Mas é muito esquisito. Saio da minha bolha, depois de vinte e muitos dias, arrancando de fome, e o que vejo?

Uma cidade inteiramente vazia!

Um vazio de pessoas, que chega a doer nas entranhas.

Algo fatídico, infausto, sinistro, insólito, surreal, insueto! ...

Até parece com uma das minhas narrativas! Mais fantasiosa?, impossível!

Me perguntei, posicionado tal como um dos meus estranhos personagens:

– Estou onde devo estar??? ... Estou em universo paralelo???

Um quase mês enfurnado na caverna do Batman! ...

Um quase mês sem ver a cara de gente! ...

Um quase mês amigado com o velho notebook, desconectado do mundo, em idílio com a perfeição! ...

Saio, porta afora, e nada encontro a não ser a desolação do asfalto e das calçadas!

Por certo, é a mensuração do imponderável, esse deserto de vida senciente.

Sumiço sepulcral, ao rufar de silentes tambores!

Apático, me sentia o único. Talvez o último dos moicanos, nessa desolação sem termos.

Silêncio a pino! Tanto que me feria meus ouvidos e me arrombavam os sentidos! E eu, um tatupeba recém-saído da toca, perambulando como que embebedado. Entontecido pelo terrível choque de me deparar com o nada!

O nada de vida que me rodeia, é por demais assustador!

Sentia no ar o cheiro da essência de um marasmo se desvirando em letargo e se achegando a um mau sonhar..., um pensar estar desperto, ao tempo que zanzando à palo seco!

E eu, mais e mais me desesperava! ..., entretanto, sem ter a quem mostrar minha desesperação, engolia em amargo seco, o meu desespero!

Um simples e puro pesadelo não me assustaria tanto!

Zanzando por ruas vazias de gente, com o bucho roendo de fome, as tripas enchidas de lazeira, e o quengo desvirado em vinagre! ...

Sim! Vinho azedo, sim! Um azougue que me tomou o quengo e se desmanchou no ácido do entorpecimento.

Sim! Sozinho e letargo, sim! Um avantesma circulando por ruas que nada tem; que não são mais que completos e inteiros amontoados desconexos de construções, sem um único pé de pessoa, essas pretensas ruas.

Eu alastrando cheiro de guardado, quase que chegando ao mofado e ao embolorado..., e esse grande nada; essa coisa nenhuma transbordante, exalando terror e espargindo cagaço e difundindo mistério!

Disforme e assustadora, essa capoeira de lhufas! Bulhufas! Patavina! ... Ironias à parte.

Estava de não ver um pé de gente, nem sentir cheiro de gente, uma vez que não havia rastro de gente nas ruas, por inteiro!

Será que uma grande nave espacial abduziu a cidade?

Ou foi a carrocinha?? ... Deve ter sido uma carrocinha gigantesca. Rsrsrsrs..., brincadeiras à parte!

Isso tudo era muito estranho!

Cadê aqueles que vivem fora da minha bolha?? – Me perguntei..., me perguntei..., me perguntei... Até gritei, mas as ruas nada me responderam! As ruas estavam mudamente caladas.

Me sentia meio que zumbizado! ... Vagando em “busca de moinhos de ventos!”... Um apalermado Dom Quixote de la Mancha! Uma Triste Figura ambulante!

Me sentia invalidado, bordando uma trilha icónica, com rastos enlameados pela chuva fina, que instigava a imaginação e molhava os pés!

Será que esse chuvisco pouco, é prenúncio de um temporal de chuva ácida??

Ou uma nuvem radioativa está para varrer essa desolada cidade???, e todos fugiram!!! ...

Para onde?! A Cidade é grande. Vai ser uma busca infrutífera!

Será como achar uma agulha no palheiro!

Será como buscar um grão de sal numa praia!

E a verdade carcomida e a vilania desenfreada ..., e as ruas desnudadas..., despidas de gente, de risos, de palavras..., desvestidas de humanidade..., e não era uma narrativa falaciosa. Ao menos por esse viés!

Me dei conta do sumiço de tudo e de todos, mas não atinei o que poderia ser. Depois de uma clausura monástica, já quase que principiando tornar-me monge budista, tal o meu isolamento de concentração no meditativo dos afazeres..., foi um grande espavento, sair às ruas e me deparar com a desaparição das pessoas.

Não tinha gente nas ruas!

A cidade era cenário de filme hollywoodiano!

Será que estão filmando alguma novela?? Mas cadê as câmaras?? Cadê os atores?? Cadê tudo?!?!

Parece filme de terror! “O Mundo das sombras” – excelente título; “O vírus” – esse e mais científico! E eu, com lágrimas de palhaço a me escorrer pelas faces, uma vez que a angustia e a desesperação eram de tal forma horrendas, que um débil sorriso de idiota não me saia da cara! Frente a frente com o inteiro vazio das ruas!

E o tempo fluía, tal como fluía o ar e as águas da chuva rala e persistente.

Queria despertar, mas sabia não estar a dormir, assim, não podia avalizar como sendo sonho. Podia sim, imaginar que todos tinham sido abduzido pelo medo. Podia sim, imaginar que tudo era um simples e puro e ficcional existir.

Queria ter medo, mas não sabia que medo ter, pois mesmo o medo se calava face a insueta e triste manhã daquela fatídica quinta-feira. Fosse um domingo..., fosse um dia santo..., fosse um feriado qualquer..., mas era uma quinta-feira de uma semana que bem podia ser normal, não fossem esse vazio assustoso.

Desacautelado e apoplético, me encontro em frente a mudez das ruas! ...

..., e as ruas tão cheias de vazios! ..., eu atolado na lama da solidão! ..., afligido pelo vazio de gente..., aparentando pisar no éter..., confuso, transbordando desconforto...

Até os gritos do silêncio me incomodavam!

E os temores dobravam ao arrepio da sanidade!

Parou de chover. Ao menos por um momento, o chuvisco deu trégua.

A chuvinha se desvirou em gotas de fluído e puro éter! Em pingos anêmicos. Apenas um chuviscar maroto..., e a cidade um monte de tijolo e cimento e ferro e tinta e asfalto..., os carros! Onde estão os carros??

Será que as ruas se desviraram em rios e tudo arrastou?? Carros, gente..., só restam essas margens estúpidas, com estúpidas construções de cimento, ferro, vidro..., as janelas! ..., Mas nada tem nas janelas. As janelas estão vazias dos olhares indiscretos! Só madeira, alumínio, vidro, reflexos de luz...

..., e a minha desesperação era tamanha que nem mais raciocinava como se deve raciocinar em momentos assim! Calculei que não poderia ter um chilique e cair duro, no chão..., pois que não havia ninguém para me acudir.

E ficaria estranho, muito entranho! Uma rua deserta e eu, um moribundo estendido no asfalto, em desespero, me estrebuchando..., que cena lamentável! Ninguém para assistir o meu teatrinho; ninguém para aplaudir, ou vaiar – que seja –, meu desempenho de perfeito canastrão!

De repente, mal havia completado meu pensar, no exato momento em que começava minha frustração, visto que não haveria câmeras de TV, nem plateia, nem mesmo um repórter do “radiozinho” de Mário Kertész...

Encontrei!

Finalmente encontrei!

Encontrei um fino fio de clareza, já no findar do meu desespero, no final da rua direita!

A vendinha do seu Manoel à “meia porta”. O vendeiro poderia esclarecer alguma coisa!

Susto grande ao transpor a meia-porta, me agachando feito seriema no coito..., o que vejo??

Uma estranha figura trajando roupa para clima tipo inverno europeu; luvas de látex dessas que se usa em limpeza, de cor amarela; máscara tapando as ventas e a boca, de uma cor que parecia verde; um protetor facial, de acrílico, prendido na cabeça..., faltando só, o limpa-vidros!

Um ET escritinho!

Se não sou bom das coronárias, teria enfartado, frente a tal esboço de espantalho.

Ele me olhava..., eu olhava ele..., ele de olhos esbugalhados..., eu estatelado, aguardando o desfecho. Aquele bicho estranho, a qualquer momento podia me atacar e, quem sabe?! ..., sugar o meu cérebro ou cuspir ácido na minha cara!

Nessa hora meu coração disparou e a fome que era tanta, se desmilinguiu e sumiu de vez! As tripas e o estomago se aquietaram e os bofes quase que saem boca afora!

A beira do desespero, por causa do meu tremendo susto..., e daquele duro e estrondeante silêncio, eis que surge aquela voz ranheta, roufenha, um tanto abafada pela máscara, de cor que parecia verde, mas de tecido impossível de ser reconhecido, uma vez que a sujeira deixava margens para dúvidas: parecia lona de caminhão, parecia plástico de saco de açúcar, parecia sujidade...

– Seu minino! O senhor não tá usando máscara!, por quê??

– O senhor é seu Manoel?? – Perguntei, e mirei a meia porta para tentar me salvar da resposta.

– Sou sim! O senhor é da prefeitura?

Ufa! Estava salvo. Meu ET favorito, revelou-se um castiço terráqueo!

– Sou não seu Manoel! – Respondi, depois de suspiro de alívio.

– Tô fechado! Não tô vendendo nada!

– Calma seu Manoel! ... Calma! Tô só querendo saber onde é que está todo mundo!

– O senhor não tá sabendo?!

– Não senhor!

– Nada? ..., nadinha de nada? ..., nem um tiquinho de coisa qualquer?

– Não seu Manoel. Não sei de nada! Nadinha de nada! ..., nem um tiquinho de coisa qualquer!

– Tá de brinquedo comigo!

– Tô não seu Manoel!

– O senhor tava aonde?? Tava preso? Tava morto? ...

– Isolado na minha casa. Sem televisão e sem rádio..., até meu computador está fora da Internet.

– Não sabe nada do vírus?

– Não senhor! Não sei de nada do vírus.

– Vixe mãe de Deus! O senhor nem imagina. Um vírus! Um vírus que trancou todo mundo em casa.

– Quando foi isso?!

– Agora! Agorinha mesmo. Logo que acabou o carnaval.

– Eu já estava na minha casa, isolado de tudo e trabalhando.

– Aí veio o “loquidau”.

– Todo mundo tá aquartelado?! É sério?

– É sim! Todo mundo tem que usar máscara!

– Eu não tenho máscara...

– Pega essa flanela e põe na cara!, tá pouco suja..., mas quebra o galho.

– O que mais houve, seu Manoel?!

– Tão é fazendo política, seu minino! Tem gente subindo em caixão de defunto pra fazer campanha de vereador! Vê se pode u’a misêra dessa?!?!

– Isso é o que mesmo, seu Manoel, esse vírus?

– Um que ninguém vê, mas que tá matando muita gente.

– É o vírus que descobriram na China, antes do Carnaval?

– É sim!

– Mas o prefeito disse que não ia chegar aqui!!

– E o sinhô acredita em gente que nem tamanho tem??

– O governador também afirmou!

– Outro lesado do quengo. Tá pensando em ser presidente..., o povo que se lasque!

– Puta que pariu! Mais um “pastel de vento!”

– É o que, seu minino? ... O sinhô disse o quê???

– Nada não! Nada não!! ... Mas me conte, seu Manoel, o que se deu!

– Conto não! Pega o jornal e leia tudo!

Um jornal ensebado, com as folhas desviradas pelo avesso, com uma reportagem de página inteira, falado sobre o vírus. Umas fotos mal-ajambradas, mostrando UTIs de hospitais e covas aberta em um cemitério.

Paralelos insuspeitos!

Parecia o fim do mundo!

Fiz leitura apurada e a óbvia conflagração dos escritos davam um tom de desastre mundial.

Parecia o fim dos tempos! O apocalipse!

Minhas assertivas constatações: esse vírus é coisa de outro mundo!

Veio de lá de trás dos muitos montes e mares e ganhou terra fértil, quando plantada no cérebro desses viventes. Uma semente maléfica, mefistólica, regada com a ignorância e a estupidez dos seres humanos, desumanizados de sentimentos.

Me faltou o chão, por sob os pés!

Ao som de uma falsa calma, minha autoconfiança alquebrada! ...

..., parei de ler. Estava tudo explicado. As primeiras linhas, somadas à manchete, foram suficientes para aclarar minhas ideias. As palavras que se seguem, no corpo de um textão de página inteira, acrescidas das fotos desfocadas e fatídicas, eram suficientes para me dar susto maior que o impacto da visão primeira de seu Manoel no interior do mercadinho.

Foi nesse exato momento que o roer da fome voltou e veio bem pior do que era antes. Até os cabelos da cabeça sentiram o abalo do cataclismo estomacal.

– Seu Manoel, o senhor tem o que, pra comer?? Careço só de forrar o bucho!!

– Seu minino, tem umas broas aí no balcão...

– Serve pra começar, seu Manoel. – Nem bem completei a frase da resposta, me atirei nessas broas, que na verdade eram bolacha mata fome. Ao menos, assim eram, na minha infância.

– Se o senhor esperar, posso mandar fazer u’a comidinha de mais sustança.

– Espero sim seu Manoel! Mas por enquanto vou forrar o bucho com essas bolachinhas.

Ficou combinado. Seu Manoel passaria a me fornecer almoço e jantar, tudo recebido ao meio dia, e outras coisas mais que carecesse. Fazia entrega na minha residência, ou meu cafuá, para ser mais simplório.

Delivery, no entender de seu Manoel. Difícil foi imaginar que seu Manoel pronunciava tal “palavrão em inglês”, com tanta fluência e tão pouca perfeição. Mas isso era de menos. A comida tinha bom sabor e a prometida “sustança”. Isso era o de mais importância.

Aí pude voltar para minha vidinha besta. Para a minha reclusão monástica.

Além de “lavar e relevar e enxaguar e espremer o quengo”, buscando ideias para escrever meus textos, tenho de mais preocupação, só com a hora que seu Manoel vem me trazer o rango. É um relógio suíço! Meio dia em ponto, aconteça o que acontecer, está seu Manoel na porta do meu “abrigo anti-guerra biológica”...

..., trajando sua fatiota de clima tipo inverno europeu; luvas de látex dessas que se usa em limpeza, de cor amarela; máscara tapando as ventas e a boca, de cor que semelha verde; um protetor facial, de acrílico, prendido na cabeça...

Meu ET favorito!

E eu de chamego com meu notebook velho de guerra!, insulado no meu transtorno psíquico de escritor que quer ser lido, no desespero de criar..., criar..., criar..., criar..., criar..., criar..., criar..., – antes que o mundo acabe!

E aí me bateu uma inspiraçãozinha!

Bem! ..., não exatamente “inspiração”. Foi só um estalo. Um simples e pequeno estalo.

Mas vamos lá que seja inspiração.

Não pode passar em branco, essa terrível pandemia. Tem de haver um registro dessa minha desvairada odisseia por ruas pendemicamente vazias. Tenho que me inserir na contemporaneidade e nada mais contemporâneo que o meu vagar por ruas desertas de gente, em uma plena quinta-feira, alumiado por uma luzinha rala de meio dia, tendo uma chuvinha anêmica como fundo e o silencio pétreo como trilha sonora!

Poético! Um romance! Quinhentas e muitas páginas.

Mas seria um patético romance. Patético por que é terror e de terror eu pouco entendo. Também, a temática já foi explorada por milhares de autores: em filmes de cinema, em séries de TV, em livros..., só Stephen king já deve ter escrito algumas centenas de livros, sobre coisas parecidas.

Mas tenho que escrever algo sobre essa pandemia!

A posteridade, o que há de dizer a posteridade? Como vai, a posteridade, encarar a omissão de um escritor que viveu tais momentos aflitivos??

Aí pensei em fazer uma crônica, ou um conto, ou um poema..., ou coisa qualquer de rumo “Quarentenário”.

Até então, não arregimentei nada. Me faltou, ou não me chegou, ainda, a dita inspiração. Ficou só no bendito estalo. Disso não passou. Fiz simples anotações que se desviraram em texto sem feição definida. Um texto tão sem feitio quanto essa insânia que acomete o mundo.

Talvez me falte inspiramento. Apenas me recolhi à insignificância que me é de direito, frente a um inimigo pavorosamente forte e invisivelmente mórbido!

Me sinto, ainda, crepuscular!

Me rendi, por inteiro, à sua grandeza!

E você cara-pálida?? Fazendo o que nessa quarentenária transloucada? Pandêmico, por certo!