Carioquice – Estado de espírito
Carioquice – Estado de espírito
Hoje cedo, ao dar comida aos meus passarinhos, senti a necessidade de encerrar minha série de crônicas que, de modo singelo, homenageio o maior sambista brasileiro.
Eu, um simples projeto de escritor, sentindo falta de inspiração, encarei minha biblioteca e retirei um livro dele. Decidi reler. Tracejei algumas ideias que considerei importantes e afirmei para mim mesmo: Vamos à obra, Aroldo!
Ele diz em seu Romance Fluminense que “o ano carioca só começa uma semana após o carnaval”. Martinho, não sei se a nossa cultura é parecida, pois aqui na Ilha da Magia, também começamos o ano juntos, só depois dos festejos momescos.
Uma página após, ele fala em “ridículos maiôs americanos”.
Para mim, quase tudo que vem de lá é ridículo. Copiamos e, infelizmente, aplaudimos. Deveríamos boicotar tudo que nos vendem e empurram goela abaixo. Muito melhor seria criarmos nossas próprias fantasias, brinquedos, comidas, móveis, eletrodomésticos e otras pequeñas cosas más, como diria meu amigo espanhol. E eu insisto na pergunta: existe povo mais criativo que o brasileiro? Portanto, criemos e seremos felizes.
Com sabedoria, o criador de Joana e Joanes diz que “O Rio é afrodisíaco”. Concordo com ele e acrescento, todo o litoral brasileiro é afrodisíaco. Pode ser que a orla marítima não seja a única responsável por desinibir nossa sensualidade. Todos podem ver, em cada paisagem um renovador da libido, pois na mata, na pedra e na beira da estrada alguém já amou.
“Assim como existem os cearenses e catarinenses, nós poderíamos ser chamados de rienses ou fluviais, o que seria mais lógico porque significa o que é do ou habitante do rio”.
Continuando a citar o malandro trabalhador da Vila, eis que ele explica que ‘‘quando a primeira habitação foi erguida os índios Tupis exclamaram: ‘‘karioka! Karioka! Carioca!’’, ‘‘querendo dizer casa de branco.” Isso me fez lembrar de um escritor que já não está entre nós, Leon Eliachar. Ele celebra, em um de seus livros, que é um cairoca, ou seja, nasceu no Cairo e vive feliz no Rio de Janeiro. Se ele não tivesse conhecido a cidade maravilhosa seria sempre um cairota, ou seja, pertenceria apenas ao Cairo.
“Carioquice é um estado de espírito”. Até concordo desde que esse estado seja de paz, alegria e emoções.
Sou suspeito de ir contra qualquer explanação do pai da Mart’nália, pois sou fã integral, irrestrito. Ele fala que “é fortemente dramático, terrível mesmo, a expressão facial de um homem chorando...”.
Olha, para mim a expressão do homem chorando se torna um semblante enternecedor. E quando as lágrimas são de paz, elas me transmitem alegria. Por mim, quero ver homens sorrindo e chorando, desde que seja em busca da felicidade.
Não sei se a “aliança é o bambolê de otário”, pois quem está casado quer continuar e, depois que descasa, quer novamente casar.
Trocando em miúdos, somos todos otários. Somos todos felizes, tristes, depende de cada um. Se estiver amando é um tolo feliz. Se não, é um otário triste.
“É Incrível como uma pessoa pode se sentir totalmente solitário no meio de tanta gente”. Frase exposta pelo pai da Juliana. Mais triste ainda é o homem que não ama e não tem dinheiro. Isso o torna, obrigatoriamente, “um pão duro, um mão-de-leitão”. Eu só conhecia o termo mão-de-vaca, que nem consta do Aurélio.
Mudando de leitão para vaca, ou melhor, continuando a citar frases que o pai do Tunico, com a sabedoria que lhe é particular, brindou-nos com a seguinte: “O melhor, o mais bonito é o que mais nos emociona, é sempre o que se ama”.
Pedreira em São Paulo, Baião no Pará, Alegre no Espírito Santo, Canindé de São Francisco no Sergipe e Laguna em Santa Catarina, são cidades lindas, excelentes para morar, e emocionantes para os que lá nasceram, pois eles as amam acima de todas as outras do mundo. Assim como cada um ama a terra onde nasceu, assim também todos devem gostar de si mesmo.
O pai do Preto gosta tanto de si mesmo que sua personagem principal declara: “Eu me gostei”.
Normalmente, um escritor coloca na boca de seus personagens, suas palavras, seus sentimentos e ações que ele próprio tomaria.
Vejam que lição de vida nos é presenteada ao ser dito: “Sempre é melhor sorrir, até da própria desgraça, do que chorar. O riso disfarça a timidez e ajuda a controlar o nervosismo. Faz bem à saúde e transmite alegria, enquanto as caras sisudas transmitem mal-estar. É bom tomar cuidado com as pessoas sérias e desconfiar. Os carrancudos costumam esconder algum mal por trás das carrancas”.
Continuando com as filosofias e os ensinamentos, o pai de Maíra nos presenteia ao registrar no início de um dos capítulos: “As flechas de cupido, o deus do amor, são faíscas de olhos mortalmente fulminantes que partem instantaneamente de dois olhares. Quando se chocam as setas produzem um raio que atinge os dois corações e estes, eletrizados, querendo ou não as cabeças, se transformam em desejo corporal, amor, paixão”.
O desejo corporal, ao se tornar atitude, tem que ser feito longe dos olhos dos outros, porque, “a voz do povo é a voz de Deus, mas a língua é do diabo”.
Quase no final da leitura, o pai da Alegria usa uma frase que eu desconhecia: “matou duas saracuras com um tiro só”.
Essa frase tem o mesmo significado que “matar dois coelhos com uma só cajadada”, e, diga-se de passagem, é frase bem mais brasileira, pois espingarda e saracura têm muito no interior, mas cajado anda muito distante das mãos dos brasileiros, mesmo dos colonos do interior.
Falando em colonos, a bebida preferida por mim é a pinga. Já o pai do Pinduca cita o champanhe como bebida corriqueira. Ela serve para comemorarmos alguma conquista. “Impressionante como com uma garrafa de champanhe se faz uma boa farra a dois e parece que se está numa grande festa”.
O que me deixou bem contente ao ler o livro foi que me pareceu estar sendo homenageado ao chamar de Haroldo um dos personagens. Da próxima vez vou pedir que ele tire o H para que eu “chore o mais bonito dos choros – o da felicidade”.
Aroldo Arão de Medeiros
10/12/2006