ENTRE O ANTES E O DEPOIS
Crônica/Prosa poética
Pelas quermesses julinas das Marias-Chiquinhas aqueles tempos eram mágicos, embora sejam algo já distantes.
Eram eles sempre férias escolares , então, a viagem de São Paulo para a esperada quermesse JULINAS da igreja, a daquela cidadezinha desenhada nos livros das fadas, durava nove horas pelos trilhos dormentes.
Assim que o trem apitava, o coração acelerava para pular na plataforma da estação , numa dança dum tempo que não chegava nunca. Parecia algo sempre só de ida ...
Tratava-se daqueles caminhos que seguem para a eternidade, daqueles "agoras" sem fim, porque tudo parecia ter preguiça de olhar para frente.
Ali, o único que insistia em girar os ponteiros era o relógio da torre , cujo sino das horas plenas continua a badalar até hoje.
Aquele relógio não se cansa nunca.
Afinal, para que olhar para a dobrada do que não existe na nossa percepção?
Há tempos que tudo parece internamente eterno. O tudo de fora nós é só moldura.
Naqueles dias não havia cansaço, havia apenas o brilho nos olhos que olhavam, bem curiosos, para cada detalhe novo de toda a jornada que começa .
Era como se uma bateria invisível me carregasse sem jamais descarregar, então, depois da segurança da benção do padre e já com a fonte luminosa acesa ali na pracinha , o desejo era apenas ter " sorte" e ganhar um correio elegante dum garoto legal.
Era mágico. Quem me mandaria um bilhetinho afetuoso?
Os eleitos sempre estavam por ali, a olhar de soslaio para as meninas que desfilavam na quermesse dos sonhos, como se a mordiscar a maçã do primeiro encantamento.
Eu era apenas uma a aguardar a emoção de receber um bilhetinho declaratório de eterna paixão. Coisa pra toda vida...
Não me lembro de haver ali a tal da barraca do beijo e hoje entendo que a cidadezinha não comportaria tanta modernidade.
Sinto que os odores da festa me chegam até aqui, à poesia das minhas letras: a carne na brasa, o milho verde, a brilhante maçã do amor, a pipoca , o pinhão , o quentão.
A agitação das mesas, o desfile das roupas da festa, as " marias- chiquinhas" feita com fitas impecáveis, os chapéus, a dança típica, a barraca da pesca, a família ao lado, o cuidado acolhedor, a hora exata para subir a pirambeira, voltar para casa e dormir o sonho da inocência folclórica.
Um dia, não faz muito tempo, retornei do cenário pelos mesmos trilhos das tantas idas e vindas, depois de saber que as chaves trancariam, para sempre, uma época mágica dentro de mim.
A minha quermesse se findara, finalmente.
Desamarrei minhas marias- chiquinhas, guardei as fitas e segui em frente, pelos dormentes bem acordados.
Tempos depois entendi que há cenas, as ingênuas e felizes , que nunca se fecham nos livros da gente.
São as memórias dos encantamentos dos começos que pulsam escondidas.
Ficam lá, prontas para serem relidas, como se ilustradas por um invisível marcador de páginas dum tempo.
Elas ficam por ali, instigantes, para serem folheadas sempre que o relógio do sino soa alto, naquele mesmo timbre, talvez para nos avisar que o tempo é só um ser que não existe.
Um ser Senhor que apenas se dobra no espaço percorrido... entre o antes e o depois.
Ele apenas coexiste nas histórias que continuamos a protagonizar quando o coração acelera, a despertar todas as entrelinhas grafadas pelos nossos dormentes encantados...