MEU PRIMEIRO LIVRO
Era março. Chovia como sempre.
De canto com o mundo eu bailava meus lamentos nos versos de John e Paul... Os Beatles eram fodas!
Como qualquer um da minha idade, eu também era anárquico, odiava ouvir o que fazer. Resmungava a qualquer palavra da mamãe, e ela odiava rock. Lembro ainda da vez em que tentei aprender violão. Cantava baixinho, pra ninguém ouvir mesmo. Mas ô diabo de ouvido que ela tinha:
- minino! Cala essa boca!
- ô voz irritante!
- vai tocar lá fora que eu tô com dor de cabeça!
Com toda essa motivação caseira, me tornei músico. O rei das guitarras. Melhor que Hendrix, eu acho. E isso tocando só há três meses!
Me senti idiota relembrando isto agora. Pois bem, a vida é a sim mesmo: tem horas que parecemos ser tão inteligentes que Einstein ao lado criaria mil planos pra colar nossas idéias. Noutras parecemos lesmas pensantes irracionais.
Naquela chuva eu era uma lesma qualquer.
Caminhei em direção ao ponto de ônibus, como de costume naqueles dias em que a vida era: praça, música e passeio no prédio escolar. Educação? Nem pensar...
- Ah! Não quero ser Nerd!
A chuva, como que numa mijada forte de São Pedro lá do alto engrossou em poucos instantes.
Não liguei pra chuva.
Achava romântico catar idéias e diluí-las nas gotas transparentes e frias dos fins de tarde da cidade das mangueiras.
Mas o frio, o frio roeu meus ossos e estilhaçou em minúsculos pedaços os rabiscos dessa minha prematura filosofia de vida naquela tarde.
Um lugar chamou-me a atenção (o único aberto ao público naquela hora):
“PROMOÇÃO DE LIVROS HOJE”
Pensei:
"- bom, eu entro e finjo que quero comprar qualquer coisa até que a chuva passe de vez."
Molhado, empurrei a porta de correr para o lado esquerdo.
Próximo à porta, sentado numa poltrona marrom, um rapaz magro conversava com uma moça elegante de olhos bonitos. Falavam sobre algo que não lembro.
Chamei a atenção pelo jeito.
Pra fugir dos olhares, peguei o primeiro livro que havia na frente.
“Eu estava dormindo e me acordaram
E me encontrei, assim, num mundo estranho e louco...
E quando eu começava a compreendê-lo
Um pouco,
Já eram horas de dormir de novo!”
Aqueles versos eram oceanos onde jamais eu havia nadado.
Quis mergulhar sem perder tempo em Quintana. Quis ser o próprio Mário Quintana!
Olhei para o lado e vi tanta gente falando em línguas que eu não ouvia, não entendia.
Me senti ridículo.
"- como que nunca gastei um centavo comprando livro?"
Meu dinheiro (ganho com meu próprio suor, acho bom lembrar isto) era pouco. Mas o pouco dava pro meu mundo tão pouco: cordas novas, discos novos, sorvete e cinema.
“-de quê mais eu preciso pra viver?” Eu pensava.
Puxei com algum remorso misturado de covardia com duas pitadas de entusiasmo, medo e desejo pelo novo meus poucos trocados do bolso.
Olhei por alguns instantes o dinheiro na mão.
"- putz! Que horror uma vida inteira depender de uns trocados pra se desenvolver pessoalmente! Mas é isso aí...fazer o quê?"
A moça que atendia no caixa me observava ao fundo (algum tempo depois a própria me revelou isto):
“- vou levar este hoje...”
Falei com um ar de veterano nos livros, mas a voz revelava: acabara de vestir a primeira fralda.
A moça sorriu e deu um desconto.
Sai da loja contente: ganhei um desconto qualquer e levava pra casa o pensamento concretizado em papel de um cara que nem sei quem era.
Corri pra casa e já nem ligava pros poucos pingos de chuva que ainda caíam.
Sentei na cama e devorei em poucas horas os “Apontamentos de História Sobrenatural”.
Faltava um cigarro após aquele coito com meus mundos comuns ao dele.
"- Quintana é foda!"
E foi assim por semanas, meses e anos.
Dia após dia minha alma, como uma vagabunda qualquer, despia-se e se deitava noutras almas todos os dias à noite.
Hoje, 40 anos depois, não há mais Beatles, nem Mário Quintana.
Num quarto qualquer de pouca luz solar, após fumar meu cigarro pós-transa, escrevo estas linhas e percebo o quão bom é escrever, fugir, criar e mentir, mesmo dizendo a verdade a mim.
Sinto-me idiota por esperar tanto pelo primeiro parágrafo próprio.
Como diria Drummond:
“Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam pra casa.
Estão menos livres, mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem”
É março e chove agora.
E cá dentro algo me diz baixinho como as canções que eu cantei na juventude:
"- Que bom que me salvei a tempo!"