UMA DROGA PERMITIDA
Quem, por mais engenhoso que pudesse ser, poderia imaginar que um simples objeto, que a princípio permitia, ainda com limitações a comunicação móvel se transformasse no queridinho da pessoas, independente de sexo, idade e renda.
Para quem não lembra, ou mesmo não tinha despertado interesse pelo assunto nos primórdios, tudo começou com a primeira geração – G1, e funcionava como qualquer telefone do início dos anos 80, apenas com vozes.
Foi preciso uma década para se produzir o G2, agora menor e com aprimoramento na qualidade do som e introdução da mensagem de texto as suas funcionalidades.
Mais dez anos precisaram passar para a chegada dos 3G, trazendo atrativos que extrapolaram limites, marcando o início dos novos aparelhos, agora batizados como smartphones, que incorporaram mais velocidade na transmissão de dados pela internet e também na transferência de dados multimídia (MMS).
Mais uma década foi necessária para a velocidade dos dados permitir o streaming de mídia, com utilização de sistemas operacionais avançados (iOS e Android).
Foi apenas no início de 2020, que se revolucionou de vez o aparelhinho, agora dotado de velocidades extremas, baixa latência, suporte para internet das coisas, e que permite trabalhar com realidade aumentada e também a virtual.
Ao longo destes, quem diria 40 anos de evolução, avanços notáveis tornaram esse objeto numa droguinha, que agregou viciados de todo espectro de idade. Vou descrever abaixo outras características marcantes em sua evolução.
No quesito design, de grandes e pesados, se tornaram finos, leves e com telas sensíveis ao toque.
As telas, de pequenas e monocromáticas, ganharam cor em alta resolução, e recentemente se tornaram flexíveis e dobráveis.
As câmeras, aqui sim foi um caso a parte, partindo da baixa resolução, evoluíram para sistemas complexos com múltiplas lentes, inteligência artificial e capacidades de gravação de vídeo com alta definição.
A capacidade de armazenamento alcançou requintes improváveis, saltando de megabytes, para gigabytes e finalmente incorporando terabytes, permitindo armazenar quantidades inimagináveis de fotos, vídeos, aplicativos e documentos.
Por fim, na conectividade o mundo perdeu de vez seus limites, permitindo agora comunicações instantâneas e acesso a informações em qualquer lugar.
Passado todo esse passeio pelo avanço tecnológico das últimas décadas, o que realmente me interessa é sua interferência direta no comportamento humano, que para alegria geral de todos, efetivamente não deixa mais ninguém isolado do mundo.
Porém, pessoas parecem que perderam de vez a responsabilidade pelo que estão fazendo e consequências graves vem com frequência acontecendo fruto dessa contagiosa doença.
Não importa por onde circule, vai ter sempre alguém com aquela postura tradicional, inebriada com as luzes emitidas pelo aparelho. O problema fica mais grave, quando você passa diante de uma viatura da polícia, e se dá conta que ambos os policiais, que a princípio deveriam estar atentos ao que acontece em seu entorno, estão ali dispersos, enfeitiçados pela droguinha.
No trânsito, não são poucos motoristas que dividem sua atenção com a telinha colorida, e essa moda atrai também motociclistas e ciclistas, que desafiam o equilíbrio ao dirigir com apenas um braço.
Nas calçadas, ficou cada vez mais comum alguém esbarrar em você, simplesmente por estar no automático, na verdade com a atenção apenas voltada para o aparelhinho. Nas portarias, funcionários perderam de vez aquele aspecto solitário, e sempre faziam questão de cumprimentar quem por ele cruzava. Hoje, muitas vezes sequer notam sua presença ao atravessar a portaria.
Mas o espaço público que mais chama a atenção são vagões do metrô, onde praticamente todos passageiros sentados ou mesmo de pé, mantém aquela já tradicional postura, com o pescoço inclinado para frente, completamente inerte ao ambiente, inebriados apenas apreciam acontecimentos na brilhante telinha, que sua mão suporta por tempo indefinido.
Será que estamos presenciando e quem sabe até participando da futura postura do homo sapiens.