Deus quis assim

São trinta e cinco anos passados e parece afinal que a barriguinha saliente, ora menos, ora mais, passa a ser sintoma da mais pura resignação. É como se Deus em Sua sabedoria tivesse escolhido uma cota para na Terra carregar essa marca e eu tivesse sido um dos escolhidos. O que me conferiria uma certa importância, visto que na vida poucas vezes eu fora o escolhido.

Porém me pego pensando que esse Deus consciente e até mesmo essa ideia tiram de mim qualquer peso e no fim das contas eu posso falhar. É meu direito falhar! Então eu me pego menos triste, afinal a barriga está lá e faça o que faça isso não vai mudar. Carregar essa outra marca é a sua sina!

Então essa ideia de Deus consciente parece tirar, ao menos da consciência, qualquer peso de mim. Não que a partir de agora eu possa sair atacando a geladeira, comendo docinhos ou beber a vontade com os meus amigos. Eu vou continuar digamos a viver sem que barriga me torture, assim como as minhas falhas. “Deus quis assim” é o pensamento que me dá um certo alento.

Entretanto, e se esse Deus não for consciente e ele for somente a vida manifesta? Deus está em tudo, Ele, com letra maiúscula, é a vida manifesta, portanto, já não é responsável por isso ou por aquilo e eu tenha na verdade que arcar com o peso das minhas escolhas, com o peso de quem sou, afinal nasci. Em outros tempos minha barriga saliente faria que eu sobrevivesse a fome ou de que fosse de uma aristocracia que passava bem longe dela. Aqui, hoje, ela só me lembra das minhas falhas, não a barriga em si, mas as minhas escolhas, o lado pessoal das minhas escolhas. Eu só procurei o melhor para mim e fui punido! É um erro querer o melhor para si? Então é isso, o que me resta é assumir minhas responsabilidades, afinal, não há esse Deus que quis isso ou aquilo.

Eu então nos momentos difíceis vou fingir que há esse Deus consciente e vou usá-lo como meu grande irmão com o qual posso desabafar como se ele conhecesse todo o abismo que carrego no peito. Nesses momentos em que eu não tiver ninguém para falar eu O terei. Vou jogar com a realidade também, afinal a vida é dura e eu não posso ser mole, na medida do possível vou lutar contra as minhas falhas. Ah como tenho estado cansado em tentar ser melhor, mas não vou construir minha vida sobre ilusões, as coisas caminham para o pior assim se o destino do ser humano é o fracasso que eu, ao menos, consiga me manter bem até o final de tudo.

Por ora, continuo tentando me fazer de forte nos conselhos aos amigos, conselhos esses que nem eu consigo seguir, mas ainda tento. A barriga bem a barriga e só um detalhe, como a pedra no meio do caminho...

Sérgio da Luz
Enviado por Sérgio da Luz em 08/07/2024
Reeditado em 08/07/2024
Código do texto: T8102596
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