Há exatos cinco anos, três dias e 10 horas passava pela Getúlio Vargas, como de costume, com bastante pressa.
Não fosse a intervenção de um rapaz que, sentado à beira da pilastra do banco do Brasil, a última parada seria o centro histórico da cidade, mas era improvável não ficar sensibilizada com tamanha angústia, demonstrada pelo dito cujo.
Perguntou se poderia ajudá-lo em sua empreitada (nada convencional) de angariar recursos para que a mãe, em tratamento de câncer, pudesse gozar de um leito com dignidade para que, enfim a cura fosse a consequência.
Mostrou-me fotos da mãe e da família (que dizia pertencer) e lançou logo um desafio:
- Trouxe alguns filhotes de poodle toy de Jeceaba para vender e com isso, ajudar minha mãezinha. Não seria justo que as pessoas saíssem daqui de mãos vazias. Assim pensei em algo que pudesse fazer cada um se lembrar do quão generoso foi e porque não um cãozinho?
Primeiro considerei estranho que o rapaz tivesse diversos filhotes de poodle toy, depois passei a crer que o desespero o fizesse tomar uma decisão tão dolorosa: vender os cães de estimação da família em prol de uma causa maior. Fiquei comovida. E decidi ajudar no que pudesse. Ele falou que cada cachorro era 500 reais e que já estavam vermifugados e vacinados.
Confesso que fiquei em choque, uma raça como essa por um preço tão baixo, só poderia significar altruísmo.
Voltei para casa, sem me lembrar do quão apressada estava, com a sensação de dever cumprido e de que, num futuro próximo ao olhar para o Toy, sentiria o quão vale a pena ser bom.
Mas o destino me deu uma bela rasteira...
Os meses se passaram e a cada ida ao hospital veterinário, uma nova descoberta: o cachorro tinha pulgas, carrapatos, sarna, nunca havia tomado vacinas, nem tratamento para verminoses e, possuía doenças de pele, como a dermatite, que o tornavam um irracional triste e sofredor: não comia, não dormia, não vivia.
Mas o melhor estava por vir: a cada novo amanhecer o cachorro se tornava maior e com pelos e características que fugiam às prometidas pelo pedinte. O meu maior medo se tornou um fantasma e me perseguia toda vez que observava o cachorro... Seria ele um vira-lata? Será que fui enganada,
A cor branca prometida, tinha se tornado abricó. Os pelos, vieram escorridos como se tivessem passado por transição capilar canina. E o cachorro cresceu tanto que nem mesmo o crânio, cabia na porta da casinha, comprada para ser o seu lar.
Não bastasse as constatações que ora afloravam meu pensamento, havia em casa, uma espécie de provocação diária feita pelos meus pais e irmãos que, com os risos disfarçados, propunham DNA canil. Colaram em minha testa um atestado de trouxa e mudaram o nome do cachorro que de Tarantino passou para Duke com K porque duque jamais seria.
Na minha cabeça havia uma espécie de "grilo" que me fazia refletir o quão as pessoas podem ser tão más a ponto de enganarem os outros e sequer sentirem remorso. Cada vez que passei pela porta do banco, observei se estaria ali o filho da senhora adoentada, mas anos se passaram e nunca mais o vi.
Andei me perguntando se minha ingenuidade seria um fator preponderante na minha formação de caráter e, quantas vezes ainda, passaria pela linha pervertida da falsa bondade, sem ser cortada pelo "cerol" que a acompanha.
O Duke cresceu e virou um belo vira-lata! Não tinha as características de um poodle e nem a delicadeza da raça, mas tornou-se um amigo. Medroso e espaçoso, diga-se de passagem. Até hoje, é preciso fechar a porta para usar utensílios como vassoura e rodo, ele entra em desespero de vê-los. Inclusive, avança sobre o que detém estes utensílios.
Mas como a lei do retorno é implacável (para alguns) cá estou em Jeceaba, cidade vizinha, com aproximadamente 4.900 habitantes. E a lembrança veio à cavalo dominar minha mente. Onde estaria o rapaz que me deu o cão? Ou vendeu, sei lá... Será que era mesmo da cidade que disse?
E depois de cinco anos, três dias e nove horas, o reencontro. Na praça da cidade, em meio aos cidadãos que frequentavam a feira livre, um rapaz com uma caixa de raladores, expostos à mesa.
A minha emoção foi tomando um lugar perigoso: estaria disposta a ultrapassar os ensinamentos bíblicos do 70X7 e, sob o domínio do desejo de vingança, devia interrompê-lo em sua mais nova empreitada? Ou deveria comprar um ralador ultra moderno que faz mais de 40 tipos de alimentos em segundos?
Por alguns minutos me vi imóvel. Uma sensação estranha de que não queria olhar nos olhos de quem me enganou ou que não queria mostrar ao enganador que sobrevivi. Não sei bem descrever o que sentia. Mas parecia que me sentia constrangida em dizer ao mentiroso que descobri a verdade.
É incrível como somos movidos pelos sentimentos que vivem em nós. Não seria o ideal desmascarar quem lhe trouxe consequências? Mas foi aí que compreendi que somos superados por aquilo que temos dentro de nós. Não é o que ele fez comigo, mas o que eu consegui fazer com isso.
Fui até lá, sem desejo de vingança e sem a necessidade de ser vítima da minha ingenuidade e, por um instante, senti-me sufocada. O olhar do rapaz encontrou o meu e ele abaixou os olhos. Olhei novamente e ele disfarçou o olhar. Não resisti:
- Eu te conheço de algum lugar?
- Não, moça, Nunca te vi na vida. Dá licença que vou ter que dar remédio pra minha mãe.
E saiu correndo como se fosse um animal irracional, deixando a barraca sozinha. Olhando para trás. Até que um garoto, interpelando o meu olhar, disse:
- Ele não tem mãe...
E, de novo, a minha parte pouco virtuosa, quis dar uma de duquesa contrária, derrubando a banca, carregando todos os raladores e gritando, aos quatro ventos, que era o moço da banca do ralador. Mas me contive, afinal, cada um oferece o que está no seu interior.
Se vale a pena ser bom? Só sei que não vale a pena ser ruim. E ponto.
E o Duke? Vai bem obrigada. Comemorou seu aniversário de 5 anos no hospital veterinário com dermatite canina.
Vida de cão essa! Nos dois sentidos...