A maior das virtudes
Há dois ou três dias, no intervalo do jogo entre Portugal e França pela Eurocopa, a maior competição de futebol do velho continente, me vi com o celular em mãos pesquisando sobre as estatísticas e a história desse torneio e, lá pelas tantas (o segundo tempo já havia começado) eu já estava no início da Idade Média, no mundo de Carlos Magno, o chamado “Pai da Europa” e principal figura de referência e reverência do etnocentrismo europeu moderno.
Após um clique aqui e outro ali, afinal, o jogo não estava passando de um 0 a 0 sem muitas emoções, me deparei com uma lista de virtudes cavalheirescas publicadas pelo próprio Sacro Imperador Romano, por ocasião da sua coroação no dia 25 de dezembro do ano 800 depois do nascimento do homem do qual foram e são feitas, até os dias de hoje, as mais inconcebíveis tentativas de ligar a sua figura com esse poder religioso e bélico dos europeus, e, claro, já poderíamos imaginar quais seriam as virtudes presentes desta lista. Citarei apenas três, quais sejam: amar a Deus, servir ao senhor feudal fielmente e defender a igreja e promover sua causa. Poderia ser muito interessante traçarmos um paralelo daqueles tempos com os tempos atuais no tocante ao cenário político mundial, com a intenção de entendermos, por meio de uma análise histórico-social, o porquê dessa ascensão da extrema direita no mundo inteiro, mas ater-me-ei a uma abordagem, digamos, menos sociológica e mais filosófica, embora esta separação só seja possível para fins didáticos, visto que o homem racional pós-socrático é o “separador” de conceitos e ciências, diferentemente dos que vieram antes de Sócrates, para os quais o entendimento da natureza estava no Uno ou no Todo. Esta diferença entre os dois grupos de filósofos é crucial para começarmos nossa discussão acerca das virtudes, uma vez que para os chamados filósofos naturalistas, isto é, os que antecederam o pai da maiêutica filosófica, a virtude humana não tinha nenhum papel ou interesse na busca pelo conhecimento da realidade; foi com Sócrates, Platão e Aristóteles, os pais da racionalização da natureza, que as virtudes humanas ganharam importância no estudo do homem.
Platão, na sua obra A República, que faz parte dos seus diálogos socráticos (Sócrates não deixou nada escrito, quase tudo que sabemos sobre suas ideias são por meio dos escritos de Platão), é quem fez a primeira abordagem sobre estas características humanas que seriam as qualidades que toda pessoa deveria cultivar, tanto para o seu próprio bem como para o bem comum e que deu início à ética filosófica. É possível dizer que todo o assunto contido na obra gira em torno das quatro virtudes platônicas, que são elas, a sabedoria, a temperança, a justiça e a coragem, sendo elas a base do comportamento moral humano e que auxiliam no entendimento do Aghaton, que é a forma do Bem discutida entre os personagens do diálogo.
Em alguma de suas obras, salvo engano em o Anticristo, Nietzsche escreveu que o cristianismo é uma espécie de platonismo para o povo comum. Esta constatação do filósofo alemão pode ser considerada devido à influência que os escritos de Platão tiveram sobre os pais da igreja apostólica romana, influência esta que permeia toda a moral cristã, haja vista a lista de Carlos Magno e que também podemos ver nas virtudes cristãs que são objetos de discussão desde o início do cristianismo, como as sete virtudes cardinais, as quais se opõem aos sete pecados capitais. A virtude também atravessa os estudos de muitas outras correntes do pensamento universal, sendo tema das religiões tradicionais do oriente, como o Taoísmo, o Budismo e o Hinduísmo.
Por inúmeras vezes já me indaguei de qual seria a virtude mais importante, algumas vezes considerando a humildade, a compaixão, a tolerância ou a bondade como a principal, outras vezes a gratidão, a resiliência, a prudência ou o desapego como o supra sumo do caráter humano, mas, no final das contas, cheguei à conclusão de que é realmente a coragem a primordial virtude para a vida humana, e direi no que se baseia a minha opinião.
Não falo da coragem que está relacionada a não ter medo de nenhum perigo, como uma forma de coragem um tanto irracional, mas sim de uma coragem que faz com que encaremos nossos medos de frente, uma coragem que permite que uma pessoa supere seus fantasmas pessoais e suas incertezas, enfrentando desafios e adversidades com determinação e confiança. Esse aspecto da coragem é determinante para o crescimento pessoal e para o desenvolvimento emocional, pois permite que os indivíduos se movam além de suas zonas de conforto. Não adianta sermos generosos, justos ou sábios, se não temos a mola propulsora para nos impulsionar a uma atitude de saída de uma inércia existencial. A meu ver, é ela a principal virtude do ser humano, aquela que mais nos ajuda a realizar nossos sonhos e alcançar nossas metas.
A disputa entre as seleções portuguesa e francesa acabou indo para as penalidades máximas, as quais exigem uma certa coragem por parte dos batedores na hora dos pênaltis. Já vi muito jogador que não tinha essa virtude nesse momento essencial de um jogo de futebol e acabou “pipocando”, como se diz no mundo futebolístico, escolhendo não fazer a cobrança. A Seleção francesa acabou vencendo o duelo por 5 a 4, não por falta de coragem do jogador português que errou a sua cobrança, mas sim por falta de habilidade mesmo, visto que sua cobrança não foi uma das mais bem executadas. A França segue então na sua meta do tri-campeonato e nós sigamos com a nossa que é ter uma vida com cada vez mais coragem.