AS MANHÃS DE DOMINGO (uma crônica não recomendada para românticos)

Hoje é domingo. Domingo é o dia mais diferente dos demais dias, que são os outros dias que fazem a semana. E semanas fazem os meses, e os meses fazem o ano, e os anos compõem as décadas que completam as nossas vidas.

Hoje é manhã, manhã de domingo. A manhã de domingo é a parte do dia mais diferente do dia mais diferente dos outros dias da semana.

Nos outros dias da semana, acorda-se ou para ir ao trabalho, ou para ir à escola, ou para ir ao cabeleireiro, ou para fazer a feira de orgânicos, ou para ir ao cartório pagar a nota promissória atrasada, ou para ir ao banco pegar empréstimo ou renegociar a dívida do cartão de crédito. .. Nos outros dias da semana sempre se acorda com algum compromisso, afazer ou atividade.

Porém, nas manhãs de domingo não. O acordar matinal no domingo é desigual, distinto, estranho e divergente, pois, ao se despertar vindo do sábado e trazendo dele suas ressacas, apenas se acorda para as manhãs dos domingos. E as manhãs dos domingos são preguiçosas, morosas, ocas e desocupadas. Nem os churrascos ou os almoços em família ainda começaram. Jogo, só mais tarde.

Então, por que se acorda nas manhãs dos domingos? Por que não pulamos essa coisa esquisita, insólita e quase bizarra que é a parte matutina do domingo? A resposta é tão clara e tão explícita que chega a ser invisível, afinal o óbvio é sempre aquilo que a gente não nota, não enxerga, não percebe e nem pensa.

Diz um certo ditado de origem anglo-saxã que “se os peixes pudessem pensar a última coisa que pensariam era a água”.

Se Saint-Exupéry está certo ao afirmar que “o essencial é invisível aos olhos”, por conseguinte o óbvio é aquilo que nos é basilar, primordial, substancial e medular. O óbvio é tão imanente e tão intrínseco, tão entranhado, arraigado e íntimo, que não estamos nem-nem para ele. Por acaso, querido eventual leitor(a), você já se pegou passando o dia auto-observando o oxigênio que você está respirando, tirando as exceções de você estar com algum problema respiratório, estar meditando ou estar se afogando, por exemplo?

Nós acordamos nas manhãs dos domingos para experimentar o nada. Isso mesmo, o nada, pois, no fim de contas, as manhãs de domingo são impregnadas de nadas. Todavia, acaso retirarmos as inúmeras e incontáveis atividades embutidas na rotina dos demais dias da semana, o que teremos? Nada. A vida é um imenso nada que preenchemos de coisas para não sentirmos o nada.

William Shakespeare, na peça Macbeth, revelou que “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem sentido algum”. Ok, mas isso é a Vida, caro fortuito leitor(a), não a minha, a sua ou a dele. A vida individual e pessoal necessita ter sentido, por isso vamos dando algum sentido às nossas vidas que estão sendo vividas dentro de um diminuto espaço de tempo de um espaço enormemente maior que é a Vida.

Sim, a gente acorda, toma banho, escova os dentes, come, sai pro corre-corre do dia-dia mundano, depois almoça, volta pro corre-corre do dia-a-dia mundano, para em seguida fazer happy hours ou uma fezinha na loteca, enquanto outros vão pro culto, para as academias, bater uma pelada ou jogar o beach tennis da moda, vão estudar inglês, postar seus cachorros e seus gatinhos no Instagram, dar likes, joinhas e outras bobagens do escapismo digital, assistir o capítulo da novela, maratonar alguma série na Netflix, fornicar de vez em quando, etc, etc, etc... e depois a gente volta a dormir esperando acordar no dia seguinte. E assim, passamos pelo nada da Vida sem nem notar.

Mas aí vem as manhãs de domingo, e o nada revela sua face. Ah, o que seria do nada sem as manhãs dos domingos? Sem as manhãs de domingo o nada seria nada. Graças as manhãs dos domingos o nada se torna protagonista. Por um breve tempo, é verdade, pois logo, logo, com a maior urgência, vai começar o churrasco, a missa, o almoço em família, o jogo na TV, o cineminha da tarde... e O Fantástico, ou Domingo Espetacular se você for de assistir a Record.

Contudo, nesta manhã deste domingo de hoje, já que o domingo é um dia diferente, vou fazer diferente com meu domingo. Vou me distrair em escrever sobre as manhãs de domingo. E assim, vou camuflar o nada escrevendo sobre o nada.

Joaquim Cesário de Mello
Enviado por Joaquim Cesário de Mello em 07/07/2024
Reeditado em 07/07/2024
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