Longa, constante e monótona reta final
Costumam dizer que a vida, assim como uma montanha-russa, é feita de altos e baixos. Bem, eu, em meus poucos vinte e cinco anos vividos e na loucura diária da rotina de um estudante de medicina, reconheço que as oscilações fazem parte da nossa jornada. No entanto, sei também que a linha de chegada se dá em uma longa, constante e monótona reta.
* * *
Era segunda-feira, final da manhã, e o plantão no pronto-socorro estava mais tranquilo do que o habitual. Na recepção, alguns pacientes aguardavam sua vez de serem atendidos e, na observação, outros poucos aguardavam exames e condutas do médico responsável. Eu, como estagiário, ia para cima e para baixo de acordo com a necessidade e com os pedidos do médico que me supervisionava no dia.
Em certo momento, já na hora do almoço, o preceptor pediu para que eu avaliasse um homem no repouso masculino. Perguntei do que se tratava e, sem responder minha pergunta, mandou que eu fosse ver como ele estava, enquanto me dava as costas e saía em direção ao refeitório. Sentei-me em frente ao computador e busquei sua ficha no sistema: “paciente com 91 anos de idade, doença pulmonar obstrutiva crônica, tosse, dor no peito e falta de ar”. Mais ciente do que encontraria, fui até o quarto.
Encontrei a filha do paciente sentada ao pé da cama, fazendo companhia para um homem de baixa estatura, moreno, outrora forte, com aparência de quem por muitos anos havia trabalhado debaixo do sol quente, com um chapéu de palha na cabeça. Cumprimentei-os e disse que estava ali para conversar um pouco e ver como ele estava.
“Olha, doutor”, título que ainda não carrego e que desde cedo na faculdade disse para mim mesmo que evitaria de usar em meu dia-a-dia, “vamos indo, né?”
“De um jeito ou de outro, tem que ir”, respondi com um sorriso que foi retribuído, “mas como está se sentindo agora?”
“Tô um pouco melhor do que tava quando cheguei”, ele me contou.
“E como que o senhor estava?”
“Ah, cheguei com uma tosse chata, carregada, uma fraqueza. Já faz uns três dias que tô assim. Antes conseguia fazer minhas coisas, mas agora não consigo”.
“O senhor chegou a ter febre? E tem conseguido comer?”
“Doutor”, respondeu a filha, “não dá nem para saber se deu febre porque ele vive tomando dipirona por conta própria. E não anda comendo muito, não. Também tem o problema da próstata e, às vezes, tem dificuldade para ir no banheiro”.
“Tem mais alguma coisa que mudou recentemente ou que ele começou a sentir nos últimos dias?”
“Tem uma dor no peito, do lado direito, quando vai respirar. Sei que ele não vai falar disso, mas ele reclama em casa”.
Ouvi um pouco mais sobre a história do paciente e as ponderações da filha, e comecei o exame físico direcionado para a principal queixa no momento. Com isso, encontrei alterações nos sons pulmonares, que, somados à história clínica, sugeriam um quadro de pneumonia, hipótese reforçada por um raio-x de tórax feito naquela manhã.
Com as informações que tinha em mãos, fui até o refeitório passar minhas impressões para o preceptor e dar minha opinião sobre o que poderia ser feito.
“Doutor, conversei com o paciente, vi os exames realizados, examinei e, para mim, é um caso para internação e cuidados hospitalares”.
“É nada”, recebi de encontro. “Do jeito que tá lá, dá para mandar com antibiótico para casa”.
“Mas, doutor, o raio-x dele não tá nada bonito, o exame físico tem alterações, os exames laboratoriais mostram infecção e ele não consegue comer. Além disso, tem a questão da idade, da DPOC e da próstata”.
“O raio-x tá daquele jeito por causa da DPOC. Vai lá e fala sobre ir para casa com antibióticos”.
Contra minha vontade, voltei ao quarto de observação e conversei com a família. Falei sobre o que o médico havia proposto, mas também expressei algumas ponderações de minha parte. A filha insistiu em internar o pai.
Saí do quarto sem saber o que fazer. Antes de voltar ao preceptor, parei em outro consultório e pedi opinião para outra médica plantonista, que compartilhava de meu pensamento. Pediu para que eu insistisse com o outro médico um pouco mais. Assim o fiz. Tentei, mas falhei.
“Deixa que eu vou lá resolver isso daí”, foi o que ouvi do plantonista responsável. Depois disso, não mais ouvi falar sobre o paciente naquele dia.
No entanto, ao chegar ao hospital na manhã seguinte, encontrei o mesmo médico com expressão de desespero atrás do computador, digitando às pressas alguma coisa. “Aquele paciente que você falou para internar voltou de madrugada passando mal. Vou interná-lo agora”.
O homem lúcido que encontrei no dia anterior já não estava mais lá. Naquela manhã, havia apenas um senhor, inconsciente, deitado em um leito de hospital, com necessidade de cateter de oxigênio, cambaleando entre a vida e a morte. Os familiares já faziam rodízio para se despedir, com filhos, netos, bisnetos, sobrinhos e amigos entrando e saindo da área vermelha com lágrimas nos olhos.
Outro médico assumiu o caso e eu acabei por não o visitar mais naquele dia. Contudo, meus pensamentos não saíam dele, imaginando o que eu poderia ter feito de diferente para convencer o médico a interná-lo. Nada, acredito eu. Não era meu carimbo, minha decisão. Ali, como estagiário, podia expressar opinião, mas a decisão de acatá-la era de quem ouvia.
Fui para casa ao fim do expediente acreditando que aquele senhor não suportaria a chegada de um novo dia. Ledo engano. Às 15:45 da quarta-feira, a equipe de enfermagem entrou desesperada no consultório em que eu atendia sob supervisão de outra médica.
“Doutora, o paciente está indo a óbito”.
Não sabia de quem se tratava. A doutora deixou a sala, acabei de dar alta para uma paciente e saí atrás da equipe.
Encontrei a médica em um quarto de internação, entrei e dei de cara com aquele senhor, com os sulcos em seu rosto muito acentuados, a boca semiaberta e sem respiração. Eletrodos em seu peito transmitiam sinais (ou a falta deles) para uma máquina, que imprimia a linha de chegada daquela vida: 12 longas, constantes e monótonas linhas retas em um papel vermelho quadriculado, atestando o fim da vida. A filha, ao lado do pai, chorava. Olhando para mim, falou: “O senhor se lembra dele, né, doutor? Você o atendeu segunda-feira”.
* * *
Sim, eu me lembrava e arrisco-me a dizer que não vou me esquecer. A vida daquele homem chegava à reta final, enquanto a minha enfrentava uma das descidas dos múltiplos altos e baixos do meio da jornada.
Quem dera tivesse eu algum poder de decisão frente àquele caso. Por mais alguns meses, serei apenas um estagiário preocupado em fazer o melhor ao meu alcance por quem cruza meu caminho. Se minha opinião tivesse sido acatada, não sei se teria mudado alguma coisa no desfecho, e nunca vou ter essa resposta, mas...
Bem, a vida não se faz à base de “mas...” nem de “e se”.