Quando o anjo da guarda tira uma folga.
Feito uma onça pintada que espera a distração da capivara antes de dar o bote, o meliante estava de pé com a mesma postura do felino faminto.
Escorado numa das pilastras de sustentação da cobertura, no ponto de ônibus, ele se mantinha atento aos passageiros em redor que saíam para trabalhar, pacientemente aguardava uma oportunidade para agir. Moreno, jovem, de estatura mediana, compleição magra e aspecto relaxado, apesar de algumas tatuagens nos braços ele não tinha má aparência, mas também não era atraente.
De repente uma senhora preta, que sugeria idade avançada, aproximou-se do local de cabeça baixa tentando achar algo perdido na sua tiracolo cuja alça trespassava-lhe o corpo até o quadril do lado direito; achegou-se ao assento vazio colado a parede de fundo do abrigo e logo se acomodou sem deixar de remexer o interior da bolsa que ajeitou no colo ao se sentar.
O vagabundo, com cabelo castanho encaracolado, calçava tênis e usava trajes humildes, porém limpos; essas características entregavam-lhe completa feição de um cidadão de bem que sai cedo pra pegar no batente e por conta de tudo isso ficava invisível; claro que ele era notado, contudo, sem que lhe dessem a menor importância acabava sendo totalmente ignorado, exatamente conforme o planejado.
Com os pés cruzados, as mãos enfiadas nos bolsos da calça e apoiado contra a viga da cobertura, ele reparou na chegada daquela mulher que se assentou no banco ao seu lado alheia a tudo e a todos inteiramente focada no que procurava com afã.
O malandro apostou que, apesar das roupas modestas e do seu jeito simples, ela haveria de sacar algo valoroso daquele sumidouro ou não ficaria assim distante e distraída por tanto tempo, manteve a frieza habitual e dissimulou gestos para acompanhar cada movimento da idosa sem chamar atenção; favorecido pela posição privilegiada em que se encontrava bastava olhar de soslaio de cima para baixo para vigiá-la na sua busca obstinada.
Mais pessoas se juntaram ao grupo. Um veículo de transporte público parou e levou parte do contingente, os que permaneceram no local somavam exatamente o número de dedos de uma mão.
Nesta hora a idosa, que também ficou para trás, era a única ocupante no conjunto de assentos, e agora ela segurava um maço de notas enroladas formando um grosso tubo de papel amarrado com elástico; só após achar seu dinheiro e com ele em mãos foi que se deu conta da possibilidade de sofrer um assalto e automaticamente ergueu o sobrolho para conferir quem eram as pessoas no seu entorno.
O patife, concentrado, notou essa mudança de comportamento e afastou-se sorrateiro para ficar mais atrás da viga e dificultar a percepção da sua presença, nem de longe duvidou das evidências, ou seja, de que a dona acabara de resgatar o que buscava no fundo da sacola, só lhe faltava desvendar o tipo de tesouro que ela guardava com cuidado, tinha ânsia de saber se era algo verdadeiramente do seu interesse.
Passada a vista nas pessoas entorno de si, com exceção do sujeito desprezível fora do seu campo de visão, e por não suspeitar de nada nem de ninguém, a inocente senhora, despreocupada, confiou de retirar uma nota do amarrado para pagar sua passagem e bancar outras despesas. Determinada curvou-se sobre o colo e com o auxílio das duas mãos acreditava que conseguia esconder bem a sua fortuna, desenrolou o elástico que atava o maço e puxou a cédula mais externa sem desfazer o rolo de dinheiro.
O delinquente não teve dificuldade para confirmar a própria intuição, bastou-lhe enviesar um pouco a cabeça de lado sobre o pescoço e olhando por baixo foi suficiente para destacar o seu troféu. Neste instante o ladrão entrou em ação e arrebatou com violência o maço de notas da mão esquerda da pobre senhora que ficou aturdida, boquiaberta, com olhos arregalados de surpresa e espanto incapaz de qualquer reação. De consolo restou-lhe uma cédula de cem reais amassado entre os dedos fortemente fechados da mão direita e nada mais.
Uma vez que o larápio agiu rápido, em silêncio, e a mulher não reagiu, ninguém percebeu o acontecido. Só quando o bandido correu, escapou do flagrante e já ia distante, foi que a senhora conseguiu soltar a voz e dizer: - Gente! Acabei de ser roubada!
O marginal conseguiu ser tão sorrateiro que ninguém acreditou.
Alice, mais próxima, surpresa com a informação, foi a primeira a se manifestar, e interpelou alto: - Roubada aqui!, agora!?
Seu Antenor foi outro, e se achegou com dificuldade de compreender, questionou incrédulo: - Cadê o ladrão, pra onde ele foi?
D. Lorena ficou assustada, inquiriu nervosa: - Por que a senhora não gritou pedindo ajuda?
A vítima, tensa, assombrada, respondia sem coordenação a um e a outro que interrogava qualquer coisa.
- Ele me atacou, puxou o dinheiro da minha mão com violência, correu na direção do parque e sumiu na transversal.
- Eu nem tive tempo de entender o que o sujeito queria, ele foi ágil e truculento, fiquei estarrecida.
A frágil senhora percebeu seu coração palpitante, sentia-se mal e precisava beber um pouco d’água, levantou-se e seguiu rumo ao cruzamento atrás de achar alguma loja aberta.
Passado o assombro, começou o disse me disse entre as pessoas presentes na parada de ônibus, e ouviu-se de tudo; D. Lorena falou dirigindo-se a todos: - Aquela senhora revelou que enrolou seu dinheiro e prendeu com um elástico, esqueceu-se porém de retirar o da passagem. Manuseá-lo justo aqui foi um erro. Ela facilitou para o ladrão.
Seu Antenor, por sua vez, jogou ao léu exprobrações contra a segurança pública que considera cada vez menos eficiente.
João, ausente no instante do delito, pegou o bonde andando, mas porque gosta de opinar sobre todo tipo de assunto, não conseguiu ficar calado: - Pra esta situação, sem puxar arma, a polícia já nem prende mais larápios dessa laia, porque a lei determina pouco tempo de cadeia. O próprio delegado manda soltar.
Alice proferiu com certa curiosidade: - Por que será que ela enrolou e amarrou a quantia que levava? Coisa de doido! Acho que ela deveria fazer registro na delegacia.
Outro coletivo parou e todos embarcaram ainda discutindo o roubo.