NAVEGANTES SEM BÚSSOLAS, À DERIVA POR DESACREDITAREM EM SEUS REGISTROS

Vivemos um momento que considero perigoso, do ponto de vista filosófico.

Digo isso por razão de entender a filosofia como sendo a capacidade de observar a sociedade com pensamento crítico e buscar novos padrões de evolução do pensamento e comportamento diante dos eventos contemporâneos.

O que me preocupa é a polarização política alicerçada em interesses não declarados de ascensão ao poder, com o uso de canais de comunicação como igrejas, redes sociais etc.

A estratégia da extrema direita é questionar os fundamentos científicos e históricos, enquanto a esquerda busca um caminho oposto, usando a ciência e a história para fundamentar suas prerrogativas e propostas.

Em ambos os casos, questiona-se o direito à liberdade de ação e de expressão. Liberdade que toma matizes diferentes e colocam em risco a estabilidade de toda a sociedade.

O uso libertino das redes sociais, que se apresentam como uma terra sem lei e, em muitos casos, acima das leis às quais todos os outros segmentos estão sujeitos, abre caminho impune para as notícias falsas, agressões e questionamentos sem fundamentos e sem comprovações aos fatos científicos. A atuação legal sobre esses meios de comunicação é apontada como forma de censura por aqueles que desejam impunidade.

Se, de um lado estamos sujeitos a informações manipuladas e com intencionalidades, o questionamento a fatos relatados, sem que exista a preocupação em apresentar argumentação sustentável – o que enriqueceria o debate – é igualmente perigoso.

Cresce o número de pessoas que acreditam que o planeta é plano, entre outras bizarrices, sem que apresentem provas – o que seria impossível – apenas se baseando em livros religiosos que apresentam uma versão infantil e temporal aos fatos astronômicos.

Todo conhecimento passa então a ser questionado, com a alegação de conspirações mundiais para manipulação da população.

O questionamento é válido, quando lúcido. Não podemos questionar fatos científicos, sem que existam estudos e hipóteses testadas pelo método científico.

Exemplos existem aos montes, como não se questionar o fato da lei da gravidade, sob pena de colocar a vida em risco por saltar de um prédio, acreditando ser uma falsa premissa.

Acordamos com o toque de nossos smartphones, que nos trazem notícias e mensagens de nossos contatos escolhidos. Muitos usam aplicativos de transporte pessoal para chegar ao seu destino. Pagamos nossas contas por aplicativo ou com cartões eletrônicos. Viajamos em aviões e, com recursos, podemos chegar a outro continente em apenas um dia de viagem. Como questionar esses fatos? As crenças religiosas ou políticas não conseguem oferecer esses recursos, entre tantos outros, como faz a ciência.

Uma pergunta: quando se fica doente, vamos à igreja ou ao hospital?

A resposta é óbvia: podemos até ir à igreja e orar, mas, dependemos dos médicos para a cura de nossas doenças.

Misturar política e religião para contestar a ciência é, além de infantil, perigoso e cruel.

Na pandemia, quando os profissionais da saúde sofreram com sobrecarga de trabalho - alguns perderam a vida – no tratamento de doentes sem os recursos que precisavam, houve quem os molestassem, acusaram-nos de conspiratórios e foram mais um peso nas costas de quem mais precisávamos.

Tenho lido algumas postagens em que se questiona a história, criando versões que atendam às teorias religiosas, como o caso de pessoas que dizem não ter sido a igreja a responsável pela “Santa” inquisição, quando foi um papa a definir essa normativa que resultou em perseguição e morte de tantas pessoas consideradas como “bruxas” ou hereges (alguns, por praticar a ciência). Isso me faz lembrar do livro “1984” de George Orwel, no qual a profissão do personagem principal era “mudar” os textos históricos, dependendo de que ala política estivesse no controle.

Mas o posicionamento de desconfiança de tudo pode ter afeitos ainda piores, no que se refere à saúde mental da população.

Se não acreditamos em nada sem a busca correta (e fundamentada em pesquisa séria) pela verdade, passamos a perder as referências e o sentido de tudo. O resultado é o abandono gradual da moral e da ética e a perda da sanidade: um passo para a barbárie.

A evolução da ciência traz a incerteza, por minar algumas bases conceituais admitidas após novas descobertas. Além disso, existe um desconhecimento geral de como funcionam os recursos aos quais temos acesso: quem conhece os processos para produção de energia ou saneamento, senão apenas os seus especialistas? O mesmo se aplica a quase tudo o que temos em mãos, como a roupa que usamos, o funcionamento do smartphone, a tecnologia que faz mover automóveis, aviões e embarcações etc. Quando nos faltam esses recursos, ficamos sem ação, dependendo de especialistas para a solução.

Esse desconhecimento é prova de que existe sim uma ciência por traz de tudo o que usamos e dependemos. É prova de que existe um mundo real e palpável, ainda que desconheçamos a forma como ele seja edificado e seu funcionamento.

Intencionalidades sempre existem, pois, é característica humana: não existe isenção de intenção em nada o que se diz, acredita e pratica. Logicamente que, os que detém os meios de comunicação tem as suas intencionalidades: dependem de clientes que os patrocinam e que, por essa razão, influenciarão suas interpretações sobre os fatos.

Um caminho que creio ser correto é o estudo sobre aquilo que se deseja interpretar, mas, procurando todos os pontos de vista, preferindo aqueles baseados em pesquisa para fazer um julgamento de valor.

O caminho errado é achar que existe apenas uma leitura correta – como livros religiosos – e usando essa fonte para julgamento de tudo o que existe.

Precisamos de parâmetros, ainda que mutantes – e é importante que mudem para nossa evolução – para nos sentirmos seguros.

Sem parâmetros nos perdemos, ficamos como um navegador sem bússola, à deriva por desacreditar em seus registros.