As Muitas faces do Amor
As pessoas sempre me questionam, em meu consultório,em entrevistas ou meros papos, se é possível amar duas pessoas ao mesmo tempo. Há uma angústia, uma dúvida, esperança e desesperança, quando decifro o que há por trás dos olhos que olham meus olhos, não raros, marejados... Na novela "Esperança”, víamos o protagonista Toni a dividir-se entre o seu amor primevo e a esposa.Os seres humanos não gostam de perder nada, nem um pouquinho daquilo que conquistaram. E, se há dois amores, por que não usufruí-los, perguntam-se, camuflando sua ganância amorosa sob a nacessidade de não ferir, nem uma nem outra pessoa, das quais pelo menos uma está sendo enganada ou traída...Mas é bem verdade que há quem ame, por algum tempo, a duas criaturas,ambas criadas pelo seu desejo de completude.Sentindo-se o criador, como abandonar a uma delas?
O amante, homem ou mulher,é aquele que passará solitário certas datas e festas.O que terá de contentar-se com momentos.Mas não dizem que a felicidade nunca existe por inteiro, hão de perguntar?Ao que parece, sim.Mas até quando será possível suportar esse amor de migalhas, de retalhos para a colcha que não se poderá completar, de pecinhas para um quebra- cabeças sempre incompleto?...Cúmplice, conivente, quando está a par da outra pessoa, vive a sofrer, porque espera sempre mais, reza para que a qualquer momento, a união do outro desabe, para que possa apossar-se de todo o tempo dessa pessoa amada...Quantos não se enganam, chamando de AMOR a um desejo imaturo de posse?
A palavra, em inglês, para a mulher que é "a outra", é mistress.Ela é aplicada somente nesses casos:a condição social que condena a amante a um exílio amoroso.Mesmo que seja alguém realizada profissionalmente, independente, digna, vive numa espécie de degredo.Não passeia na praça com o eleito, não come pipocas na porta do cinema, não anda sob o mesmo guarda chuva...Para viver alguma imitaçãio da vida a dois, tão desejada, estratégias são traçadas, riscos corridos...Algumas dizem que vale a pena.Outras aceitam, como a Maria do Toni, ser a segunda,mesmo tendo sido a primeira.No caso dela, pelo menos, houve uma trama dos fados, nenhum dos três tem culpa do que está acontecendo, lamentam-se os telespectadores.
A cota de sofrimento de quem pensa estar multiplicado, quando, na verdade, está dividido, não é pequena.Há, realmente, pessoas que amam duplamente.Mas nunca da mesma forma.Até porque, sobram para a mulher as consequências de preconceitos e condicionamentos.O homem, muitas vezes, adora-a, mas cheio de desconfianças (se aceita isso comigo, aceitaria com outro? Sua dignidade será a mesma da minha mulher? A esposa não aceitaria tal situação...), além disso, pensa que no futuro, pode arrepender-se.Os amigos aconselham-no a não fazer besteira: a esposa é sempre a esposa, dizem.que alugue um apart-hotel, que vá a motéis, que leve vida dupla, "é até excitante", que tente ficar inteiro com as duas...Como se fosse possível!A memória, essa caixa de Pandora, esse tonel das Danaiades, esse saco sem fundo, a cada momento, envia agulhadas de lembranças, arrependimentos: estando com uma, acaba a pensar na outra...
Mas, para responder à pergunta crucial, respondo: sim, ama-se a duas pessoas ao mesmo tempo, tem-se desejo, não se quer perder...Que triste a condição humana, que permite tal situação amorosa! E olhem que não estou falando de pessoas indignas, homens mulherengos, canalhas e sedutoras. Não , estou falando de amor...
No lindo filme Lancelot, o Primeiro Cavaleiro, quando o rei Arthur vê a esposa beijar esse cavaleiro, sente-se duplamente traído, lembro-me.O rapaz era seu querido par, a jovem, a bem-amada mulher o olhar dela para o cavaleiro, é a principal revelação. Quando manda chamá-la, no seu desespero de querer uma resposta, pensa já saber qual é. Lança-lhe sua amargura: "Eu vi como olhou para ele",com aquela expressão que o ator Sean Connery sabe colocar no rosto marcado e belo. E ela, vivida pela encantadora Julia Osmond, com o outro olhar, murmura, sem baixar o rosto:"O amor tem muitas faces"O rei, mais velho e apaixonado, ruge, qual leão ferido:"Você me ama, mas não pode olhar para mim, como olhou para ele"...E, nos últimos instantes de vida, depois que Lancelot luta para salvá-lo, demonstra a generosidade do perdão, dizendo-lhe:”Você é meu primeiro cavaleiro.CUIDE DELA POR MIM"Ou seja, é muito difícil, quem ama, não cuidar...Por isso, a maioria das pessoas tem dificuldades em fazer suas opções: dói-lhes deixar de cuidar de alguém, querem cuidar dos dois amores. Ah, mas ele foi generoso porque ia morrer. Talvez. Mas já vi quem o fizesse em vida. Conheci uma senhora para quem a esposa do amante mandava presentes, para ela, para os filhos dele, já que era estéril. Compensação, dirão. Talvez, repito. Mas já vi a mais amada sair de cena, para poupar ao outro ter de fazer a escolha...
Lembro Antoine de Saint Exupèry que escreveu a magnífica parábola O Pequeno Príncipe, livro profundo, que foi injustamente desprezado porque as misses diziam dele ser seu livro de cabeceira. A raposinha e o príncipe têm a perfeita representação amorosa quando ela diz: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas".Por quem cativas, por quem te cativou. Afinal, como esquecer um verdadeiro amor?Mas renunciar, por amor ao outro, ou a si mesmos, parece ser uma grande prova dele, embora pareça paradoxal.
E por mais que me peçam que lhes diga qual é mais amado, eu apenas ajudo a, na balança de ouro, pesar sentimentos e intenções. Não posso decidir pelo outro. A decisão tem de ser reconhecida pelo self, vir bem de dentro do coração. Só nós podemos decidir a nossa própria vida...
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