UMA HISTÓRIA QUE NÃO GOSTARIA DE CONTAR

Outro dia assistindo um jornal televisivo tive a oportunidade de ver ao vivo e em cores, uma das muitas ações destrambelhadas, que a polícia militar insiste em realizar em complexos de favela da cidade do Rio de Janeiro.

Impressiona como estas ações são ainda realizadas, é aquela história de olho por olho, dente por dente, exclusivamente para militares de baixa patente, que estão sempre em desvantagem, pois desconhecem os meandros dos labirintos da favela, enquanto protegem traficantes ou milicianos, deixando literalmente de calças curtas a força invasora, nesse território de complexidades abissais.

Essa mesma historinha que nunca teve final feliz prossegue, como se houvesse uma insistente amnésia coletiva das forças de segurança, se é que estas dispõem de algum pensamento no tocante a segurança, seja para o batalhão, mas principalmente para essa sofrida parcela da população, que não tendo outra opção de moradia, permanece como anteparo dessa turma que explora simultaneamente população e tráfico.

Áureos tempos aqueles, em que o esquadrão do tráfico mantinha relação sadia de troca direta com o contingente de moradores, afinal, todos nasceram e cresceram na comunidade, e, portanto, identificados com moradores, não se furtando em patrocinar festas, transportar doentes para hospitais próximos e prestar serviços variados, quando solicitados pela associação de moradores.

O único intruso no território era sem sombra de dúvidas a polícia, sempre foi hostilizada pela população, pois na maioria das vezes subia o morro para refazer o pacto de não agressão, e assim, manter movimento tranquilo sem interferência de policiais, tanto na boca de fumo, como no entorno da favela, facilitando a vida dos usuários de droga.

Esses acertos davam segurança ao negócio, não expondo nenhuma das três partes envolvidas, com o usuário fazendo suas compras sem perigo, o tráfico reduzia uma parte de seu lucro e a polícia conseguia manter íntegra sua complementação salarial.

O problema aparecia quando mudava a liderança do batalhão, que cobria a jurisdição da favela, tornava-se necessária nova aproximação, que algumas vezes esbarrava na diferença entre a pretensão da polícia, e o que o tráfico se dispunha a pagar.

Quando ocorria impasse, todos perdiam, dos soldadinhos que ficavam sem sua complementação, o tráfico e a população da comunidade que ficavam expostos a incursões de militares em seu território, além do público usuário, que por insegurança acabava migrando para uma boca menos visada.

Então veio ao mundo a milícia, que em seus primórdios, era formada em sua essência por policiais da reserva, chegaram bem armados em algumas comunidades e expulsaram o tráfico, prometendo a comunidade segurança para todos, exceção feita para quem pisasse na bola, com execução sumária. A cobrança se restringia inicialmente aos comerciantes, através da taxa de segurança para seu negócio.

Como tudo evolui, o domínio das favelas também sofreu substancial mudança, que se transformou em negócio mais profissional, agora além da milícia ampliar seu espectro de interesse, chegou à vez dos comandos determinarem seu mapa de negócios, e foi rápida essa nova fase de atividades dentro das comunidades.

A milícia descobriu que podia ampliar receitas se implantasse o monopólio da água mineral, do gás, do sinal da TV e também o da internet.

Por outro lado, comandos agora dominavam muitas comunidades, e como qualquer organização empresarial, encerraram de vez aquela relação fraterna do tráfico com a comunidade, passando também a explorar como a milícia o monopólio de muitos serviços dentro dos seus limites territoriais.

Agora, na briga pelo domínio das favelas passou a ser coisa de cachorro grande, envolvendo confronto de arsenal pesado entre comandos e também a milícia.

Se a recepção e desmonte de carros rendia alguns caraminguás para essas corporações, na nova fase passaram a incorporar uma ainda mais rentável fonte de recursos, o roubo de cargas, e o mais interessante, não faltaram empresários locais interessados nos produtos, ali mesmo, dentro da favela.

Então, uma novidade passou a ser comum na favela, a promoção de alimentos nos mercados e biroscas. Produtos eletroeletrônicos foram absorvidos pelas lojas do entorno e também dentro da favela.

E as intervenções continuam acontecendo da mesma forma, só a polícia não evoluiu ao longo do período.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 02/07/2024
Código do texto: T8098353
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