A VIDA COMO ELA É (Dentro de uma Comunidde)

Logo que cheguei na comunidade deparei com um grupo de crianças jogando futebol em um campinho que fazia parte do terreno da Refinaria de Petróleo, cujo arame do alambrado fora convenientemente cortado pelos moradores, sendo aquela a única área de lazer das crianças. Um local pobre, com muitos problemas de infraestrutura, com grande parte da população vivendo na pobreza. Mas as crianças se divertiam a valer com o pouco que tinham. Em um instante já estava no gol desafiando a gurizada:

- “Sai que é sua Tafareeeeeeel” disse eu plagiando Galvão Bueno, feito um boneco inflável no centro do gol.

Uma garota, devia ter uns doze anos, ajeitou a pelota, deu uns três passos para trás e mandou um foguete que quase que eu mal tive tempo de me esquivar. As crianças se aproximaram sorridentes, a maioria exibia uma fileira de dentes alvos, irregulares e espaçados que lembravam milho de canjica. Alguns praticavam esportes em um projeto da Recap. Nos reunimos em uma garagem. A equipe era composta de uma Assistente Social e três Professoras. Fomos ali para ensinar lições bíblicas, ajudar as crianças com as lições de casa e dentro do possível, prestar auxílio a seus familiares. No domingo seguinte retornamos no mesmo horário mas a garagem já havia se transformado em um boteco. Então nos reunimos sob a sombra de uma árvore frondosa. No outro domingo já havia uma dúzia de crianças a nossa espera. Estávamos tentando achar um local melhor para nossas reuniões quando um garoto disse:

- Tio, fala com o seu Dito. Ele resolve o problema de todo mundo por aqui. Ele vai arranjar um local para nós.

E foi dito e feito! O seu Dito era o Presidente da Sociedade Amigos do Bairro da Comunidade local. Homem de uns sessenta e poucos anos, simpático, despachado, ágil como um gato, usava sempre um colete cáqui com quatro bolsos e com um jogo de canetas em um deles. Assim que falei das nossas intenções ele disse:

- Acho que podemos chegar em um acordo. Mostrou as instalações da Sede que dispunha de salas onde durante a semana funcionava um curso de panificação. Como só aos domingos que estávamos por lá, ficou combinado um aluguel de valor simbólico e assim conseguimos um trato vantajoso.

A partir de então o nosso contingente foi triplicando. Em datas especiais passava de sessenta crianças.

Depois de quatro anos, mudaram os ventos políticos da cidade e o novo Prefeito resgatou o Carnaval de rua. A sede da Sociedade era justamente o local de ensaio da Escola de Samba. Consegui convencer as autoridades de minha denominação que já era hora de adquirirmos um local próprio na comunidade e apontei um imóvel que atendia as nossas necessidades. Por R$ 6.000,00 o negócio foi fechado. Em um esforço coletivo construímos um salão enorme nos fundos da casa. A essa altura eu já me sentia parte da comunidade. No dia do mutirão havia mais pessoas da comunidade do que o pessoal da igreja. E assim, após um dia de intenso trabalhos, compartilhamos o nosso pão com a comunidade de forma bem fraterna e harmoniosa.

E os anos foram correndo suavemente. Havia um garotinho que tinha tanta fome que quando eu ia comprar o lanche lá estava ele me esperando no portão. Havia uma senhora que vivia pedindo para que eu fosse em sua casa fazer uma oração pelo seu filho. O garoto estava impossível, dizia ela. De tanto falar, um dia eu fui. No domingo seguinte ela chegou sorridente com o polegar virado para cima e disse:

Tio Jadilson, o Kauã mudou da água para o vinho!

Aquilo me fez um bem danado para o ego, mas no instante seguinte ela arrematou cheia de convicção:

Um tanto foi a sua oração e outro tanto foi a surra com espada de São Jorge que eu dei nele. Pensei com meus botões: Isto sim que é sincretismo religioso!

Teve um dia que estava voltando da compra do lanche acompanhado de uma criança quando vi um homem cuja esposa acabara de dar à luz um menino. Quando ia cumprimentá-lo a criança me puxou pelo braço e me impediu. Fiquei sem entender. A criança disse:

O filho não é dele tio. O menino nasceu pretinho. É filho do Negão, irmão do Maisena. Não está vendo que ele está levando na bicicleta a gaiola de passarinho, o rádio, as ferramentas e a trouxa de roupas? Ele está indo embora e está furioso.

Certa vez fui levar uma cesta básica na casa do garotinho faminto e enquanto subia uma escada um cachorro magro tentava abocanhar meu calcanhar.

Fora Maconha! Vai deitar! Ralhou com o cachorro.

E o “maconha” obedeceu o comando e me deixou em paz. No mês seguinte lá estava eu subindo a mesma escada preocupado com o cachorro.

Tranquilo tio! O maconha já era. Como assim? Disse eu.

- Aquele vira-lata trouxe carniça para dentro de casa. Meu tio o matou a pauladas. E assim era a vida na comunidade. A violência estava por toda parte, eu é que não estava percebendo. Após a morte de seu Dito por tuberculose, seu sucessor não durou três meses. Recebeu a mesma sentença que o maconha. A Polícia encerrou o inquérito como crime passional. Na comunidade, entretanto, o crime foi nominado como “Talarico.”

Certa feita, quando cheguei, uma garotinha veio correndo, esbaforida, com uma novidade. Chegou de camiseta regata, levantando os bracinhos:

Tio, tio, tio! Olha!

Olhei e não vi nada. Fiquei sem entender tanto entusiasmo.

Nasceu pelinho aqui tio! Disse toda feliz exibindo as axilas. E assim, na ingenuidade de uma criança percebi o quanto de confiança aquelas pessoas depositavam em mim. Não podia desapontá-los. E a gente fazia passeios. Certa vez levamos um bom grupo da comunidade para o jardim zoológico. Outra vez para o Playcenter. Foi uma loucura. Alguns se desgarraram e desapareceram na multidão. Entrei em choque. Um garotinho disse:

Tio, eu sei onde eles estão. E sumiu na captura dos coleguinhas. Pouco tempo depois, os sumidos voltaram e seus procuradores estavam desaparecidos. No final deu tudo certo. Foi uma aventura e tanto. E assim, por doze anos eu vivi enfiado naquela comunidade. De uma feita, quando voltava de noite, sofri um sequestro relâmpago no farol. Fui levado para o miolo da comunidade. Foi tenso. Recebi uma sentença de morte. No final, as coisas correram bem. Foi uma história e tanto. Mas isso eu conto outra hora.

Havia rumores que as obras do Rodoanel atingiriam a comunidade. E atingiu mesmo. O nosso local de reuniões estava dentro de uma alça de acesso, de maneira que os técnicos tinham pressa em fazer os acordos. No ano de 2010 todas as pendências foram resolvidas. Todas as famílias saíram no lucro. Conseguiram comprar moradias em outros bairros com o valor da indenização. O nosso imóvel fora indenizado pelo valor de R$ 90.000,00. Foi o fim da linha da nossa Escolinha. Quanto às nossas crianças, agora já crescidas, ainda as encontro trabalhando no comércio, outros são feirantes, outros estão nas grandes Hamburguerias do Shoping. Alguns estão morando no estrangeiro. Alguns já se casaram. Hoje, vejo com carinho as crianças, filhos de nossas crianças, correndo pelos corredores da igreja. E são os mais espertos.

JADILSON
Enviado por JADILSON em 01/07/2024
Reeditado em 23/07/2024
Código do texto: T8097666
Classificação de conteúdo: seguro