Crônicas Médicas - Entre a dignidade e a pequenez
De mãos vazias chegamos nesta vida e, com as mãos abanando, partimos dela. Tão pequeno que somos, muitas vezes sequer nosso próprio nome nos acompanha nos últimos momentos. É uma triste realidade que tive o desprazer e o privilégio de assistir durante os estágios da faculdade. O episódio mais recente se deu nos últimos dias, tendo sido, para mim, o mais marcante.
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O plantão no pronto-socorro transcorria sem maiores emoções naquela tarde, com relativamente poucos pacientes e nenhum caso muito complexo. A maior dificuldade até então havia sido manter a sonda vesical em um paciente embriagado e delirante, que, ao despertar desorientado, tentava retirar o dispositivo, causando lesões a si mesmo, deixando a urina cada vez com maior quantidade de sangue.
Assim seguiu até por volta das 16h, quando a equipe de enfermagem veio avisar os médicos de plantão que um carro da prefeitura estava levando um paciente ao hospital, recolhido em um assentamento. Nenhuma informação a mais foi dada, não sabíamos se o caso se tratava de homem ou mulher, idade ou motivo da consulta. Assim, esperamos a chegada do transporte.
Meia hora depois, um dos enfermeiros deu a notícia, “o rapaz da prefeitura chegou aí e deixou o paciente, bêbado, todo sujo, não falou nada e foi embora. Ele tá lá no repouso masculino, chegou andando e conversando comigo”.
Poucos minutos depois, fomos encontrar o paciente, conversar um pouco e entender o porquê de ter sido levado para lá. Ao chegarmos no quarto, encontramos um homem com aparência de quase 60 anos, emagrecido e com escoriações no rosto, nas mãos, nos joelhos e nos pés, além de um nariz provavelmente quebrado. Pelo cheiro que emanava, pela cor de suas roupas e pelas marcas em seu corpo, não tomava banho havia alguns dias. Para completar a situação, tinha urinado na calça.
“Olá! Como você está?”, perguntou um dos médicos. “Qual é o seu nome?”
Sem respostas, as perguntas foram repetidas mais duas ou três vezes. A única reação do homem era movimentar a boca como se estivesse mascando chiclete. Em poucos segundos, o paciente começou a convulsionar à nossa frente.
Tão rápido quanto começou, logo a convulsão cessou. Em questão de um ou dois minutos, o paciente estava sendo monitorizado na área vermelha, inconsciente, enquanto o examinávamos e a equipe de enfermagem colhia sangue para exames e colocava soro para reidratá-lo. Ali, uma nova convulsão tomou conta do paciente e, mesmo com o uso de medicações, levou cinco minutos para passar.
Depois disso, o homem começou a salivar, sua respiração ficou ruidosa, a saturação despencou e ele não respondia aos estímulos. Começamos a cogitar intubação, enquanto fazíamos a ventilação com máscara de oxigênio e aspirávamos suas vias aérea para evitar maiores complicações.
Aos poucos, seu nível de saturação melhorou, a salivação diminuiu e os olhos começaram a se abrir. Chamávamos por ele, sem saber seu nome, mas não conseguíamos respostas. Precisávamos, pelo menos, descobrir como se chamava, para buscar seu histórico e conseguir dar seguimento aos seus cuidados, já que, em outro setor do hospital, o laboratório se negava a liberar o resultado dos exames solicitados pela falta de identificação do paciente.
Nesse meio tempo, fomos informados de que a mãe de uma enfermeira o conhecia e estava a caminho do hospital. No entanto, para a equipe médica, o panorama não apresentou grande melhora, já que ela só o conhecia por apelido e ele também não a respondia de forma consistente. Para ele, no entanto, acredito que a presença daquela senhora trouxe algum conforto, já ela o defendia como um homem bom e trabalhador, mas que sofria por conta da bebida. Preocupada, fez promessas de cuidar do amigo e ajudá-lo com tratamentos para a dependência. Mesmo sem saber de fato seu nome, sentia por ele grande carinho, e isso era mais que evidente.
Com muita briga, o laboratório liberou alguns exames que não evidenciaram infecções até aquele momento. O quadro poderia ser culpa somente da bebida, mas era melhor investigar, ainda aguardávamos outros exames. Ali, na área vermelha, ele continuou pelo restante do plantão, sem nome e com a companhia das máquinas e daquela senhora, para, mais tarde, ser internado a fim de receber os cuidados necessários.
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O começo do texto talvez tenha trazido um drama maior do que o necessário, mas minha mente desenhou múltiplos cenários que a história desse homem poderia ter seguido. Com os piores desfechos na cabeça, muito me questionei sobre a pequenez do ser humano.
O quão miseráveis nos vemos em situações como essa? Aqui tive o desprazer de ver alguém ser largado embriago em um hospital como indigente, sem conseguir dizer o próprio nome. Tivesse ele ido a óbito, partiria quase que literalmente um Zé Ninguém.
Por outro lado, também me obriguei a retirar algo bom de tudo isso. Nesse exercício, tive o privilégio de perceber que não é nosso nome, nossa fama ou nossas posses que nos fazem ser de fato queridos por aqueles que nos cercam. Em vez disso, são nossas atitudes diárias, os pequenos gestos e os sentimentos que provocamos que nos fazem, aos olhos de quem sabe realmente enxergar, dignos de ser alguém e de receber amor em suas diversas formas.