O bosque da minha adolescência

Minha alma vazou por entre meus dedos e o que restou foi um corpo cansado que só quer dormir. As folhas dos meus pensamentos, antes tão verdes e firmes, conheceram um outono precoce. A fauna pululante de lebres e cervos migrou para um outro prado, para lá dos jardins e praças do bairro. O rio da nossa cidade, cada vez mais pequeno, transformou-se em um regatinho de nada. O bosque foi morada de raios de sóis tênues e de meus suspiros resignados; e eu adorei ficar ali sentado, contando as folhas de trevos sem nenhuma pretensão nem esperança que me façam sair da cama. O orvalho, palavra que poeta conhece, umedecia as ruas onde tanto caminhei; e lembro fielmente de uma menina que eu amei e que morava para estes lados. Quando adolescente, sonhava em beijar-lhe os dedos como o orvalho beija estas relvas e sálvias; e andar hoje por aqui, por estas ruas e viazinhas traz outras perspectivas de quando eu aqui era adolescente, tentando achar uma janela por onde eu pudesse achá-la penteando seus cabelos, como uma menina metade ninfa. Mas nunca achei-a, e por isso tornei-me poeta.

A boca cala e um riso de alívio brota em minha face e passo a contar as árvores que embrenham-se confusamente em um terreno baldio. Mosquitos dançam indiferentes a minha presença. Um homem passa de certo muito mais feliz do que eu sempre fora. Ele vive ali onde também mora a flor de meu jardim. Sonhos infantis em que sóis eram dias de caminhadas e noites a embriaguez de conhaque barato. O que fiz da minha vida senão sonhar? Dormir no colo dela como o sol dorme na linha do horizonte. Um apagar de luzes e um silêncio de seda. O crepúsculo sempre fora meu principal espetáculo. A lua, como maestra de sonos e noturnos, acorda um Chopin de nosso bosque, amanhecido de tanto vinho e de tanto chorar. Conto-lhe sobre meu amor perdido e da menina na janela de minha infância e ele se põe a rir, falando um francês que não sei se me debocha ou me repreende; pois deve julgar-me como um garoto que tenta ser um Byron desta cidade tão insignificante, mandando-me trabalhar e deixar de lado estes sentimentalismos que só me deixam com olhos cheios e o bolso vazio. Peço-lhe, assim, que me toque a valsa em dó menor, e ele diz que não é necessário, pois a lua é cheia e muito bela.

Passo então para a rua Plácido de Castro, onde vejo uma casa abandonada que antes devia ser muito bonita. Disseram-me que este bosque fora projeto de um grupo de médicos, lá antigamente. Duvido um pouco disso. Acho que os médicos é que são projetos do bosque, que sempre existiu desde os tempos de Adão e Eva. A casa abandonada tem paredes de cor bege, e estas paredes e esta cor são as únicas coisas que sobraram, junto a um pórtico que indica ter sido a casa de alguém importante. O mato toma-lhe as estruturas, como a depressão cresce em minha alma, que como esta casa, um dia contava com morada. Tinham ali amado, sorrido, gracejado… lá antes crianças brincavam, um filho ousado saía com o carro para as festas, chegando tarde, e estava tudo certo. Mas este abandono tem algo de artístico e feliz, eu sei, e a relva e o mato sobe suas estruturas servindo de cama para minha alma exausta. Só o que muda é a roda do tempo, trazendo dia e noite, o dia e a noite, e assim por diante... Uma enorme figueira tem o aspecto de que tudo sabe, como um senhor velho que viu de tudo na sua rua, e passa a contar aos amigos e aos mais novos quem morava onde, em que tempo e ocasião; e quem era isto ou aquilo, quem amava quem, quem odiava quem e assim por diante.

Pasquali
Enviado por Pasquali em 27/06/2024
Código do texto: T8094930
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