O$tentação (Ou Parece um Filme)

Aquele foi um dos dias mais especiais da minha vida. Até um tempo atrás gravar um videoclipe era um sonho muito distante da minha realidade. Eu assistia na tela do meu celular os vídeos dos meus artistas preferidos e imaginava que para fazer algo assim eu precisaria ter milhões na conta bancária e que somente depois de assinar com uma gravadora ou achar um alguém que apostasse muito dinheiro para minha carreira deslanchar seria possível fazer algo de qualidade. O que parecia um sonho inatingível, ganhou contornos de realidade quando conheci um cara que mudou minha vida, literalmente.

Qui, como eu o chamo, estudou produção visual em um curso técnico numa ETEC na zona leste de São Paulo, logo, comprou uma câmera com o dinheiro que retirou do fundo de garantia depois de anos de trabalho mal remunerado. Caprichoso ele é detalhista e edita vídeos como poucos. O nome artístico dele é Quilombo. Um garoto com brilho nos olhos que conta que sua família tem de tudo, parece o resultado de uma suruba na ONU.

O cara realmente apostou na máxima do cineasta Glauber Rocha: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” . Ele ficou desempregado e sabia que nunca mais iria participar de um processo seletivo para trabalhar em um gelado e asséptico, usando roupa social, para passar o dia dentro de uma agência bancária que parecia um aquário sem água, com ar condicionado no máximo. Qui nasceu para ser artista e intuía isso desde criança. Ele contava que vários de seus familiares haviam sido escravizados, por isso ele escolheu esse nome artístico, uma espécie de manifesto, quase uma reparação histórica. Ele adorava estudar sobre seus ancestrais africanos. Um cara diferente, não conheço ninguém igual à ele.

A necessidade de trabalhar para pagar parte das contas da casa não deixou espaço para ele sonhar muito alto até que seu gerente lhe chamou para dar a notícia de que havia tido um "corte de funcionários" e que por isso ele tinha sido “desligado” do banco. Ele conta sorrindo que sentiu um enorme alívio ao assinar a demissão.

Ele comprou a melhor câmera ¨de entrada" que pôde, fez mais um curso livre e começou a divulgar seu contato para filmar todo tipo de festa e evento para com isso conseguir pagar os boletos e investir aos poucos no seu projeto de vida: trabalhar com audiovisual e fazer o que ele mais amava assistir: videoclipes. Ele nasceu com uma cara de pau que empurrou a vida dele para frente. É o tal “o não eu já tenho, vou fazer uma proposta e tentar ouvir o sim”.

Sim, uma câmera usada, apenas duas lentes, também de segunda mão, e vontade de trabalhar com o que ele ama desde que assistiu a MTV e foi pesquisar sobre a história do canal no Brasil.

Eu não tinha como pagar à vista o valor modesto que combinamos para a filmagem e por isso Qui parcelou para mim em três vezes. Escolhi trabalhar a minha música que eu considerava ter mais potencial para estourar. A filmagem do videoclipe seria feita em um boteco de um amigo meu depois do horário comercial. Ele cedeu sem cobrar pelo espaço. Chegaríamos depois das 20 horas, ele guardou para mim garrafas vazias de bebidas em um canto do bar. Algumas com tampas, outras, sem elas.

Combinamos uma data, e nesse dia todos estávamos lá. Quim, eu, meu amigo dono do boteco, mais uns caras e algumas garotas que o Quilombo conhecia apareceriam no clipe dançando e para isso ganhariam um modesto cachê de $ 20 reais. Ficou combinado que elas chegariam maquiadas e com cabelo arrumado por elas mesmas , usando roupas decotadas e chamativas do acervo próprio, ou seja, cada uma viria com o que tinha em casa. Adoro usar termos difíceis para dar um verniz de formalidade e riqueza para algo muito banal da realidade de quem é pobre.

Eu usaria umas réplicas que eu tinha com logotipo de um pequeno crocodilo estampado. Réplica é um criativo eufemismo inventado para evitar o termo correto: pirataria. Meu boné, uma bolsa transversal e a camisa eu comprei em um camelô.

A única coisa realmente cara, naquele momento para o meu orçamento, foi pagar uma diária de um carro que aluguei em um aplicativo. A “nave” seria devolvida logo após a filmagem porque eu não ousaria desfilar com ela pela cidade e ter que pagar a franquia caso algo desse errado.

Cantar funk é minha paixão desde criança e ter um videoclipe na internet seria uma conquista. Conheço bem o sabor amargo de trabalhar com o que eu não gosto apenas para sobreviver e economizar algum dinheiro.

Com o videoclipe, eu imaginava, as pessoas poderiam conhecer a minha imagem, até então apenas meus amigos ouviam minhas músicas e elogiavam minhas letras, a mais dançante era sobre a rotina de um jovem com muito dinheiro no bolso, assediado por belas mulheres, alguém que frequentava hotéis de luxo e restaurantes famosos, usava roupas de grifes internacionais e dirigia um carro esportivo da moda.

Minhas músicas estavam disponíveis nos tocadores, eu tinha perfis redes sociais e divulgava meu trabalho para todos o tempo todo. Eu precisava fazer mais e aparecer. Gravar vídeos curtos com meu celular para postar em todas as redes eram uma opção, mas a qualidade sempre ficava duvidosa e não emplacava. Eu me sentia ridículo ao tentar fazer um vídeo de uma dancinha. Eu tentei, mas logo desisti.

Na data combinada fui para o boteco que estava vazio e limpo , nessa noite eu usava um colar, uma corrente pesada feita de material barato imitando ouro, as réplicas de grife que eu tinha, calça jeans e meu melhor par de tênis. Não poderíamos fazer muito barulho. A ideia era gravar umas cenas com o carrão na rua, eu dirigindo enquanto dublava minha música, aquela que gravei com microfone acoplado no meu celular, em casa mesmo.

As garrafas vazias com rótulos de bebidas alcóolicas que estavam em um canto, lavadas, enchemos de refrigerante e o efeito ficou bom, parecia whisky. Em outro canto estava a mesa de sinuca. Os pratos e copos de vidro usamos os do bar mesmo e ficou combinado se algo fosse quebrado durante a gravação seria reposto por mim. As cinco “modelos” chegaram no horário combinado usando shorts, muita bijuteria e blusinhas decotadas. Estavam maquiadas, com unhas enormes decoradas, usando penteados e acessórios. Elas pareciam aquelas atrizes famosas que participam de clipes gringos.

Qui fez um precinho especial para mim para gravarmos e assim depois de economizar dinheiro um tempão, eu ter ficado sem dormir direito de tanta ansiedade, finalmente realizamos a gravação que acabou com o dia amanhecendo. Ele logo mandaria o material editado e eu subiria o vídeo no meu canal de vídeos na internet. Ele faria cortes também para postar as redes e encaminhar pelo celular para a geral. Foi o combinado. Custou um pouco mais, mas era o que eu precisava.

Era o melhor dos mundos, eu vibrava de alegria. Eu gastei todo dinheiro das minhas economias, que não eram grande coisa, e fizemos um videoclipe com duração de três minutos mostrando a vida que eu gostaria de ter. O carro alugado devolvi sem nenhum arranhão, as meninas estavam perfeitas ao meu lado, no bar tinha uns amigos meus que serviram como figurantes, as garrafas cheias de refrigerante ruim pareciam de bebidas caras, a música tocando, todos dançando e rindo, pedi pizzas, fingimos que jogávamos cartas, e sinuca e eu mostrava para câmera uma carteira estava lotada de dinheiro cenográfico, enfim, foi uma noite incrível, tudo havia sido milimetricamente pensado. Aproveitar cada hora ali dentro era a meta porque não haveria uma segunda chance para filmarmos.

Qui filmou com o celular dele os bastidores e iria me mandar o material. Com essas imagens eu pensava em fazer um pequeno vídeo, bem simples, editar e mandar para todos os conhecidos contando sobre a gravação e convidando geral para assistir meu clipe em um canal que funciona como uma plataforma de vídeos na internet.

As meninas foram embora pela manhã. Uma morava bem perto, outra o namorado passou de moto para busca la e uma outra a namorada passou de carro para pega la e deu carona para mais duas até a a avenida Aricanduva. Elas participaram mais pela bagunça e vontade de aparecer do que pelo dinheiro que era quase nenhum. Elas tinham trabalhos comuns, nenhuma era atriz ou figurante e apenas uma delas estava desempregada, era vendedora, procurando emprego em lojas.

Sabendo como tudo foi feito fico encantado até hoje quando percebo que o videoclipe teve milhões de visualizações e me abriu muitas portas para eu fazer pequenos shows que agora estão ganhando volume, aos poucos.

Qui está brilhando na internet como um dos cinegrafistas mais promissores dessa geração. Gravou outros clipes com baixo orçamento, mas com qualidade impecável que renderam até prêmio de videomaker destaque do ano.

Eu ainda sonho com a vida de glamour e o saldo de milhões no banco, mas acordo todo dia feliz porque vivendo da minha arte. As meninas, “modelos”, trocam mensagens comigo até hoje e me seguem nas redes sociais. Elas adoraram o resultado porque o videoclipe tem sido muito visto.

Por enquanto a vida real tem sido de muito trabalho, noites acordado escrevendo letras e fazendo beats, mandando e-mails para possíveis contratantes, sem dinheiro para contratar uma pequena equipe eu sou meu próprio produtor .

Tenho sido convidado para abrir pequenos shows de outros funkeiros, cantando para plateias que foram de meia dúzia de amigos e que como resultado do meu trabalho estão cada vez estão ficando maiores.

Quem gosta de funk ainda vai ouvir falar muito do MC Dizz.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 27/06/2024
Reeditado em 27/06/2024
Código do texto: T8094901
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