A casa está pegando fogo
Ninguém está correndo de braços agitados, ninguém se apavora, estão todos dormindo. A casa está pegando fogo, como num quadro de Edvard Munch, mas as pessoas não veem, não percebem, estão ocupadas ou afogadas diante de instrumentos hipnagógicos e não conseguem notar.
A preocupação atual é saber da vida alheia, ocupar-se em criticar a direita ou a esquerda, idolatrar um messias eleito ou inelegível. Para isso, há um mar de notícias falsas, institucionalizadas, perfeitamente legalizadas, para legitimar as reprováveis condutas dos políticos. Enquanto isso, verbas de gabinete vão para o ralo da corrupção, criminosos se infiltram nas esferas de poder, um plano para desmontar a educação está em andamento e a cultura é luxo para poucos.
As discussões se tornam cada vez mais insalubres nas redes sociais. A violência sangra nossos dedos na hora do almoço e a desgraça alheia é banalizada com vivas de quem prega a lei de Talião, ou de quem se acostumou à guerra, à fome, ao genocídio, ao desmatamento, à escravidão moderna e aos absurdos de uma sociedade edificada no sentimento de indiferença.
A inversão dos valores e a distorção dos ensinamentos bíblicos é uma afronta à inteligência e quem se arma de tais delírios cai no ridículo por se achar esperto demais. O negacionismo nos coloca diante de problemas estratosféricos e irrevogáveis, e uma hecatombe climática se avizinha.
A casa está pegando fogo. Não há rua, não há lado de fora, não tem para onde correr. Não tem a casa do vizinho, nem corpo de bombeiros que lide com a situação. Nós estamos colocando fogo em nossa própria casa, muitos ainda não perceberam.
É mais infantil e ao mesmo tempo mais lucrativo gerar conteúdo mentiroso, dizer que educação não é importante, que incentivo à cultura é bobagem, que conhecer Gustavo Lima é mais vantajoso do que saber das ações da Doutora Honoris Causa Marisa Monte.
Acreditamos em tudo o que nosso influencer diz, assinamos embaixo de cada absurdo que nosso deputado faz, comemos a comida que nosso candidato manda, vestimos a roupa que a mulher mais elegante veste, obedecemos a tudo o que vem de algum lugar que consideramos melhor que o nosso. Só não percebemos que não há lugar diferente do nosso. A casa é a mesma e todos deveríamos estar cuidando dela, apagando o incêndio, semeando educação, colhendo cultura, semeando igualdade, colhendo fraternidade.
Quando foi que aprendemos a idolatrar pessoas com arminha na mão e a rir de quem empunha livros? Quando foi que aprendemos a banalizar palavras como amizade, família, respeito, coragem, educação, valores...?
É, a casa está mesmo pegando fogo! Não acredito mais em salvação! Rompi com a crença na humanidade, porque ela está doente, deteriorada, alienada e o ser humano é horrível. Isso me inclui. Não sou melhor que os outros. Mas tenho me esforçado diuturnamente para furar a bolha da ignorância, para que eu possa estar munida de coragem quando chegar a hora de ajudar na reconstrução da casa, porque ela vai desmoronar mais cedo ou mais tarde.
Se não morrermos todos, os mansos herdarão a terra. É bom estarmos preparados.