'Alfabetacor'

Se tivéssemos que atribuir cores a alguns dos nossos sentimentos, será que conseguiríamos fazê-lo de forma sensata? Será que seríamos capazes de superar conceitos já enraizados em nossas cabeças e, sem qualquer espécie de revanchismo, claro, reposicionar hábitos e costumes?

Já imaginaram um movimento comunicacional criado a partir da reavaliação da correspondência entre nossas percepções e pensamentos e às cores? Teríamos a oportunidade de fazer arte literária, corrigir distorções e, quem sabe, por tabela, avançar na questão da revisão de expressões que embutam algum tipo de ofensa.

Infelizmente, o que se percebe é que as cores também são utilizadas para ilustrar posicionamentos preconceituosos, ainda que muitas vezes isso ocorra de forma involuntária.

A cor preta, ou negra, como queiram, por exemplo, é consagrada à tragédia, à morte. Está definida em alguns dicionários como “a mais sombria das cores”. Quando uma situação está muito difícil é comum se dizer que “a coisa está preta”, sem que tenhamos qualquer cuidado com os nossos irmãos que têm essa mesma cor na sua pele. Por quê? Será mesmo que o que é negro, preto, escuro é sujo, perigoso e ruim?

Na mesma linha de raciocínio, temos a cor branca, que a sociedade convencionou como a cor da paz, da pureza. Será mesmo que o que é branco é isento de impurezas, é limpo, confiável e bom? E mais, por que na ausência de memória, ou de ideias, falamos “deu branco”? O branco não tem conteúdo?

E não para por aí. Por que quando alguém está sem graça, dizemos “fulano ficou com um sorriso ‘amarelo’? ” Ou, o que é pior, atribuímos covardia à cor amarela quando dizemos “Beltrano ficou com medo, ‘amarelou’”. Por quê? O sol, o mais forte dos astros, fonte de vida e força, é amarelo.

Difícil, sem dúvida, abordar esse tema sem suscitar polêmicas. Até porque estamos falando de nós mesmos, réus, vítimas e julgadores.

Se possível fosse, se as cores pudessem falar, tenho a fantasia de que elas seriam a favor de uma revisão da correspondência atual, e sou até capaz de exagerar nessa minha viagem utópica achando que partiria delas as sugestões de novas associações, de um novo entendimento da correlação raciocínio/sentimento/cor, que teria o sugestivo nome de ‘Alfabetacor’ e seria algo mais ou menos assim:

O roxo ficaria bem para ilustrar a paixão. É assim que a gente se sente e se vê quando se apaixona perdidamente;

O ódio seria abóbora. É uma cor espalhafatosa, de fácil visualização, ajudaria a identificar os odiosos;

O verde seria perfeito para a inveja, porque ambos têm formas variadas de camuflagem;

O ciúme poderia ser vermelho. Até porque esse sentimento, extremado, tende a tingir a relação com essa tonalidade;

A traição seria azul. É, azul da cor do mar. Que nos perdoe o saudoso Tim Maia, mas tem coisa mais traiçoeira do que o mar?

A solidariedade seria marrom, a cor da terra. O solo é solidário à vida do início ao fim;

A amizade seria amarela, da cor do sol, reflete a importância de um sentimento que aquece a alma e fortalece a confiança no relacionamento entre pessoas;

A cor cinza cairia como uma luva para a verdade, já que não expressa alegria nem entusiasmo. É que na maioria das vezes as pessoas não se alegram quando confrontadas com a verdade;

O medo seria rosa, rosa-bebê. Segundo especialistas, o amedrontamento tem sua origem na infância, que ‘revisitada’ pode ajudar a esclarecer muitos dos nossos distúrbios;

A mentira seria bege. Reflete bem a palidez de caráter e a personalidade exposta a decalques;

O perdão ficaria bem representado com a cor branca. Afinal, perdoar requer luz;

A fé seria negra, porque apesar da lógica da ausência de luz concentra e convive harmoniosamente com todas as cores e ainda consegue se manter perseverante, forte e capaz de promover milagres.

Augusto Serra