A saudade é uma cactácea

Os dias parecem me avisar que a morte é muito menos do que a saudade. Pareço me esforçar pra não deixar de senti-la. Sei que a lembrança é muito mais imaginação do que verdade, é muito mais delírio do que certeza. É como se assistir em uma peça de teatro que sempre muda as falas, os tons, as entradas, o entusiasmo. Dependendo do dia, tudo é riso e nostalgia. Na mesma noite, se apresentam o pranto e a melancolia. Não o pranto que chora, que se debulha em lágrimas que escorrem tortas pelo balançar do soluço, mas o pranto calado de um cacto que se guarda, que se adapta ao meio e —em vez de folhas livres — nascem os espinhos.

Deve ser por isso que a saudade, a paixão e as festas de São João são todas cactáceas. Mas sentir não pode ser “semi” e nem árido. E que flor mais linda nasce de um cacto. A beleza que se destaca é a mesma que se aterra, na seca ou na lama, podendo viver entre esturricar-se e afogar-se.

A beleza só serve aos outros. A contemplação é livre, ser contemplado é aprisionante. Uma flor não pode subir suas raízes e exercer seu livre arbítrio de andar pelo asfalto até morrer desidratada. Monalisa não pode fechar a cara ou descruzar seus braços. O belo é um castigo dos gregos. Endeusar até que se definhe. A beleza é muita carne pra pouca vida. Muito rápida pra pouco tempo. Melhor ter nascido do mármore do que do sangue.

Eu queria ser uma Helena, uma Afrodite, uma Vênus. Queria antes de saber que as mulheres de Atenas, mesmo que pudessem ser deusas, ainda eram mulheres. Mas nunca quis ser homem, queria ser uma mulher com os privilégios de um homem. Queria saber a história de uma deusa filósofa e dionisíaca. Não que precise ser deusa, mas é melhor do que ser somente musa.

Eu não sei se já fui musa de alguém, pois quem escreve sou eu. Mas tive um colega de escola que desde o primeiro dia de aula me chamou de deusa suprema. Nunca me aproveitei do título. Ele não era lá muito certo, dizia que eu era tão bonita que parecia uma garota de programa. Parecia um elogio, mas era em tom de ofensa. E quando queria me atacar, sorria com amor nos olhos. Me acertou com um caderno de vinte matérias na cabeça por ter tirado dois décimos a menos do que eu em uma prova. Em outro dia, me atirou uma garrafa pet de dois litros na mesma cabeça que nunca o julgou. É estranho. Talvez eu intimamente soubesse que todo o restante em sua vida era um eterno apontar de dedos e atirar de pedras.

Quando sentia ciúmes, dizia que eu precisava de um quilo de maquiagem pra ficar bonita. Quando se acalmava, eu era a mais linda do mundo especialmente desarrumada. Me pergunto se já conheci um homem que se equilibrasse entre atirar objetos e ser completamente inerte. A resposta é não. Ele tinha um bom coração, fico pensando em quantas mulheres vão pisoteá-lo. E por quanto tempo ele vai seguir apaixonado por cada uma delas.

São oito anos longe do São João de minha cidade. E contando. Conto a história e narro os números. Visualizo os cactos que insistem em simbolizar não somente as festas, mas a região inteira. Para que, se os sertões somos nós?

Não sou de Caruaru pra me lamentar tanto, mas sou de algum lugar que não este. Penso que na chuva de agora a única coisa afogueada possível seria o meu rosto no teu. A brasa da fogueira vira cinza, a festa se acaba, o povo se termina, a folhinha do calendário católico é arrancada, o milho sai de época, as faturas das parcelas chegam, as botas empoeiram-se e são vendidas no Instagram em pleno outubro, o frio vai embora, a decoração já parca se extingue, mas a única coisa que não se não se apaga e não cessa e não esfria e não morre — ainda que mate — e não se finda e não se descolore e mesmo que se arrependa não se deixa de pensar, e não se desforrozeia nunca porque a paixão tem esse poder de ser sanfona que vai mas que vai pra poder vir, e que quando toca não tem coração que aguente, é isso que eu sinto e não denomino porque uma palavra é mais do que todos os textos que escrevi. E pensar que o que me desfolha o coração até que sobre apenas o seu talo nu e esguio, que mesmo curvado o faz pulsar, não é a saudade — e sim a ideia de uma quase memória.