A velha e a vassoura
A velha e a vassoura:
Numa pequena e prazerosa cidade vi uma cena que me causou espanto. Uma senhora, carcomida pelo tempo, varria o chão do asfalto em torno de uma rótula. Fiquei boquiaberto, estupefato. Parei a fim de perscrutar detalhes.
Ela, coitada, com o corpo arcado, empunhava uma pequena vassoura e trazia dependurado na calça do agasalho um saco plástico. Pacientemente varria o excesso de areia, os pedaços de papel, xepa de cigarro e outros lixos que ia colocando dentro do saco.
Três dias, aliás, três noites seguidas, acompanhei o seu trabalho solitário. Na segunda noite ela trouxe uma garrafa plástica com água. Molhava as pouquíssimas e pequeníssimas fendas e buracos no asfalto que acumulavam areia.
Na terceira noite ela me olhou rapidamente e, ao cruzar o olhar, timidamente deixou escapar um “boa noite”. Aquilo fez com que eu me empolgasse e fosse conversar com ela para saber o porquê daquela esquisitice.
Eu pensava que era somente à noite que ela repetia aquele ritual. Numa tarde, lá pelas duas horas, ela fazia a limpeza, que iniciava na frente da casa, percorria a calçada por uns cinquenta metros, circundava a rótula e retornava. Eu notava que ela aparentava cansaço, não tanto pelo esforço físico despendido naquela tarefa, mas pela idade. Para mim, ela já carregava seus oitenta anos.
Uma semana depois criei coragem e fui puxar uma conversa com aquela senhora simples, solitária e que guardava uma simpatia escondida nas rugas do rosto.
-Boa noite, minha senhora – falei com respeito.
Ela respondeu com um tímido “boa noite”.
Perguntei, quase implorando:
- Posso conversar um pouco com a senhora?
Ela, já com um pequeno sorriso:
- Pois não, sobre o que você quer conversar?
- Por que a senhora varre a calçada e parte da estrada?
Minha pergunta, a princípio, parece ter assustado. Ela me encarou, mas como deve ter percebido que eu não era um curioso fútil, começou:
- Fui criada no sítio; meu pai era lavrador e nos domingos íamos à igreja. Meu pai era um líder por natureza. Com sua lábia envolvente, trazia os colonos na palma da mão. Os políticos da cidade grande aproveitaram-se disso e o pegaram para cabo eleitoral. Eu crescia e tinha o hábito de varrer a cozinha, os quartos, a sala e por fim o terreiro.
E entusiasmada continuou:
- Meu pai se empolgava com a política e principalmente com a UDN. Quando chegou a eleição para Presidente da República, eu me engajei, fissurada que estava com o símbolo do Jânio Quadros: a vassoura. Ele queria varrer as falcatruas, os roubos. Na campanha, eu estampava um broche com a vassourinha no peito e carregava uma vassoura de verdade na mão. Conversava com os jovens e até com os mais velhos. Tentava convencê-los de que o melhor era votar no Jânio.
Cada vez mais solta, contou-me detalhes:
- Deixando a política de lado, casei-me muito jovem com um homem da cidade. Ele era muito bom e vivíamos em paz.
Tivemos uma filha. Eu não perdia a mania pela vassoura. Porém meu espaço foi diminuindo. Já não havia terreiro para limpar. Apenas um jardim, mas eu não gostava de flores. Uma pequena área de piso ligava a casa à edícula. Ali, eu me esbaldava varrendo. Minha filha casou-se e três anos depois o meu velho veio a falecer. Fui morar com a filha e o genro, minha nova família. Fiquei bastante triste, tanto pela perda do esposo quanto pela diminuição do espaço de limpeza. O apartamento era acarpetado e usavam aspirador de pó. Depois retiraram o carpete e colocaram taco. Que alegria, recobrei um pouco do meu espaço sagrado. Minha felicidade, porém, durou pouco: contrataram uma empregada que não me deixava mover uma palha. Restou-me ir para a frente do prédio limpar a calçada. Como não se opuseram, fui estendendo meus limites.
Notando-me perplexo, a velha acrescentou sorrindo:
- Percebi que há alguns dias você me espiona e conhece a minha área de atuação. Essa é a minha história.
Retribuí o sorriso e agradeci:
- Fiquei feliz em conhecer a verdade. Ainda bem que não dei ouvidos aos falatórios. Achavam que a senhora não agia de maneira normal por causa de algum trauma. Agora sei que faz aquilo que gosta. Espero que a rua fique sem a sujeira jogada pelo povo e que o governo varra tudo que atrapalhe a felicidade da nossa gente.
Ela estendeu a vassoura em minha direção e fez um gesto como se estivesse pedindo que eu saísse varrendo junto.
Aroldo Arão de Medeiros
28/08/2007