A Polonesa (Ou Bozena)

Fazia muitos anos que eu não ia para aquela região da cidade. Dirigia olhando atentamente a paisagem, as casas e as ruas. Tudo parecia tão diferente. Vários prédios novos, sobrados gigantescos com fachadas imponentes. No lugar de casas antigas havia pequenos prédios recém construídos, alguns pintados com cores de gosto duvidoso.

Eu havia morado na Penha, perto da igreja, durante os anos que cursei faculdade. Logo depois emendei uma pós-graduação para em seguida entrar no mestrado. Eu sempre soube que queria dar aula de literatura em uma universidade. Era meu sonho.

Os conhecidos e gente da minha família, os vizinhos, todos estranhavam minha dedicação. Não entendiam e questionavam para que eu precisava estudar tanto. Eu explicava no começo depois desisti. Eu ouvia o questionamento e ficava em silêncio, estava cansada de repetir aquele blá-blá-blá.

Durante a graduação eu trabalhava durante o dia, ganhava pouco, dividia o pequeno apartamento alugado com duas amigas também estudantes, durante uns anos.

Foi nessa época que conhecia a velha polonesa. Velha nesse caso não é ofensa, longe disso. É apenas uma forma de dizer que a juventude passou e que ela, eu imaginava, que parecia longeva, completaria um século de vida.

Cheia de energia e muito bonita, ela tinha cabelos longos , grisalhos, com leves ondas, bem cuidados, que em geral estava presos, ela usava um coque charmoso, feito de um jeito despretensioso, muito elegante, tinha enormes e redondos olhos verdes como esmeraldas, pele muito branca e sedosa, sem manchas, poucas rugas, um sorrido doce e um sotaque musical que era encantador, pelo menos para mim que desde criança sou apaixonada por idiomas.

Ela falava português muito bem, além polonês e hebraico, eu acho. Era judia e sobrevivente da segunda guerra mundial. Ela contava falando com voz calma e aguda que cada dia de vida no Brasil era uma nova oportunidade. Ela amava o país que a acolheu. Lembro de na hora do meu almoço conversar com ela durante alguns minutos. Ela estava no jardim da casa cuidando das plantas, sempre simpática.

Ela contava que seus dois irmãos, os pais, os vizinhos e muitos amigos da família haviam morrido em campos de concentração. Ela só recebeu notícias dos sobreviventes muitos anos depois, aos poucos, o que restou dos seus familiares se espalhou pelo mundo. Depois eles vieram visitá-la aqui no Brasil. Família era algo que ela venerava. Ela veio para o Brasil com uns primos, mas eu não tenho certeza disso.

O desprestigiado escritório de arquitetura onde eu era atendente-faz-tudo de segunda a sábado ficava exatamente ao lado da casa térrea onde a polonesa morava e onde havia enormes roseiras e lindos antúrios logo na entrada para a sala.

Voltar aqui é quase como voltar no tempo. Eu era muito mais inocente e sonhadora quando morei aqui perto.

Eu me lembro do perfume do chá de maracujá que ela fazia. Era possível sentir o cheiro de longe, o vento levava o aroma para o cozinha do escritório. Um dia perguntei a receita e ela me disse que comprava maracujá, gengibre, queimava o açúcar, colocava também canela, me parece.

Para minha surpresa uma bela tarde ganhei uma garrafa térmica com a bebida dos deuses, ela fez para eu levar para o escritório. Eu apenas precisava devolver a garrafa vazia ,sem pressa. Como ensinou minha mãe devolvi a garrafa e levei junto uns docinhos de frutas cristalizadas que eu havia comprado para agradecê-la. Ela adorou.

O tempo passou e eu cresci profissionalmente e tenho um salário razoável, moro do outro lado da cidade, me casei, tive filhos gêmeos, e parece que vivo agora outra vida. Como se eu fosse outra pessoa durante a mesma existência. É inexplicável.

Me lembro de cada detalhe daqueles dias, eu era ingenuamente feliz. Que saudade.

A rua parece outra. Está completamente diferente. Alguns sobrados novos surgiram, casas foram demolidas e outras reformadas. No lugar de jardins as casas agora têm garagens cheias de carros enormes. No lugar de portões baixos tem grades espessas e cercas elétricas que deixam tudo com ar triste, de presídio .

A polonesa se chamava Bozena, nome tinha um significado bonito, algo como abençoada, ela me disse uma vez. Ela adorava cuidar do jardim, da casa, dos filhos e receber a visita dos netos. Ela ficou viúva.

Aqui no Brasil ela se casou com um judeu e manteve todas as tradições, fazia as comidas típicas, seu café e seu chá eram famosos.

Sempre sorridente ela estava com quase 80 e tantos anos, na época. Eu estava com vinte e poucos, acho. O marido dela morreu jovem, de modo repentino.

A memória dela na época oscilava, não estava tão boa. Alguns dias ela queria conversar enquanto cuidava das plantas logo cedo, ela adorava o sol fraco, ver as pessoas passando na rua e ao meio-dia, aos sábados, recebia os netos, crianças, para almoçar com ela. Era uma tradição.

Quando ela não estava bem não ia até o jardim . Nesses dias eu via apenas a cuidadora de idosos, paciente e carinhosa, que tomava conta dela. Na verdade eram duas cuidadoras que revezavam, mas a outra eu não conhecia.

Quando ela estava mal do escritório podíamos ouvir seus gritos. Eu não entendia o que a polonesa dizia, ela desesperada berrava de pavor, ouvi o som de bombas caindo (a cuidadora comentou) e chorava desesperadamente.

A cuidadora acho que se chamava Maíra aprendeu com ela algumas palavras de polonês e a acalmava levando a para o quarto, fechando as janelas, deixando pouca luz, e sentando ao seu lado na cama.

Era triste ouvi-la gritar desesperada. Meu coração ficava apertado imaginando as coisas horríveis que ela deve ter visto antes de fugir da guerra, ainda jovem, o que deve ter passado até se fixar no Brasil.

A jovem cuidadora era muito dedicada e nos dava notícias da polonesa nesses de recolhimento, digamos assim.

Bozena alternava momentos de lucidez plena com outros de trevas onde apenas a cuidadora ficava com ela, tentando faze lá comer um pouco e dormir para descansar.

Maíra respondia pacientemente nossas perguntas e repassava as mensagens carinhosas para a polonesa assim que ela aos poucos voltava à lucidez. Ela era muito querida pelos vizinhos.

Nunca mais esqueci o rosto daquela mulher tão aguerrida, que parecia uma fortaleza e ao mesmo tempo tão frágil.

Imagino que ela tenha vivido mais várias anos nessa rua depois que me mudei daqui. A casa onde ela morava ainda existe mas foi completamente reformada. Os filhos devem ter vendido a propriedade depois da morte da Bozena, eu imagino, não sei detalhes.

Me arrependo de não ter vindo vindo nunca mais visitar o bairro e a polonesa. O tempo passou rápido demais, a rotina profissional me consumiu, os filhos transformam os dias em curtos períodos de tempo, a distância e o trânsito dificultaram tudo e eu nunca mais tive notícias dela .

Onde ficava o escritório tem agora um condomínio de casas feias, todas iguais, parecem caixinhas com pequenas janelas.

Eu olho em retrospectiva para minha vida e penso na finitude. A nossa única certeza é a morte. Ter consciência disso torna a vida especial e dolorosa em alguns momentos, ao mesmo tempo.

A vida é incrível, surpreendente e pode ser dura. Como escreveu Cartola: "o mundo é um moinho".

Fiquei parada dentro do carro olhando para a rua. Não sei quanto tempo se passou.

Liguei o motor do carro e tive notícias pelo rádio que o trânsito estava um inferno, e eu usaria um aplicativo para tentar encontrar um trajeto menos pior para voltar para minha casa.

Eu tinha muita coisa para fazer e precisava ir embora.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 22/06/2024
Reeditado em 22/06/2024
Código do texto: T8091195
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