Míope de amor, procurei remédio na escrita

Queria ter a importância dos passarinhos. Um bem-te-vi gago inspirou Chico Buarque. Um pássaro dançarino, dizem, inspirou o moonwalk de Michael Jackson. O beija-flor é o animal mais citado da história da música brasileira. Se eu inventei ou não essa informação, não importa. Escrever é mentir verdadeiramente.

“Como você faz para ter essas ideias?”, eles perguntam. Mas não há resposta certa pra isso. Pego o papel e corto os meus pulsos. E todos sabemos que o corte de papel só perde pro corte das palavras, que pingam nos textos que se mancham de mim mesma. Atrás deles, me escondo como criança que cobre os olhos com as mãos e acha que sumiu.

Por um momento eu pensei que estaria na minha cidade no melhor mês do ano, que também consegue ser o pior. Gosto de sentimentos múltiplos. De tudo que é dúbio. O dobro. Uma dupla. Gosto do que tem o poder de ser excepcionalmente bom e miseravelmente ruim. Acho que me sinto em casa.

Ontem Bruno sem Marrone se apresentou na minha cidade emprestada, onde eu desembarco feliz desde Xique-xique ou Central. A felicidade vai se diluindo junto ao Dramin no meu sangue, meu coração não decide se vai parar ou se quer bater mais forte. Então eu sinto só a lembrança de um órgão que pulsa, da alegria que senti, do que um dia pensei ser bom. Vejo minha mãe e tudo em mim é recarregado, inclusive a esperança de que daquela vez será diferente. A esperança não dura um abraço. Viajo léguas de saudade pra ter a mesma resposta. Eu amo uma cidade que me estranha. Mas dessa vez será realmente diferente. Há sempre a possibilidade da piora. E é nela que eu deposito minhas últimas fichas. Preciso do horrível para que o bom seja notável.

Ouvindo Bruno e Marrone, me lembrei da pessoa mais intelectualizada que eu conheço e que — como boa parte dos brasileiros que sobreviveram à pandemia — se esbaldou na live sertaneja dessa dupla. Mas eu nunca entendi a parte de Marrone em Bruno, cuja voz e presença ocultam completamente essa outra pessoa que se fosse muda eu acreditaria. Eu que não bebo imediatamente levanto a minha mão como se estivesse segurando um copo, equilibrando-o durante o meu cantar sentido. Típico de quem está alterado em uma festa ou de qualquer fã de Raça Negra. A mão que segura a cerveja contrasta perfeitamente com a outra que descansa sobre o peito que brada conforme a letra. Canto todas. De Bruno sem Marrone a Luiz Carlos. De Caetano a Pablo do arrocha, meus conterrâneos. De Ray Charles ao Rei Roberto, cujo título eu só respeito porque sobretudo respeito minha mãe. De Adriana Calcanhotto a Luiz Gonzaga. De Cartola a Zezo potiguar. Gosto de ser muitas porque sinto tudo em diferentes partes de mim. Mas na alma, que quando me tocam entro em estado de catatonia poética, poucos adentram. Se eu fosse famosa, um jornalista também poderia me diagnosticar com a síndrome caetanista e buarquista que assumo que tenho. Sinto muito. E é por sentir muito que eu gosto tanto.

Ontem estava analisando a minha cidade sob a lente da festa. Existe a farra comum, que é quando as pessoas se reúnem sem motivo aparente para beber, mas também existe a farra justificada — que é quando as pessoas utilizam um pretexto qualquer que justifique a bebida, o que geralmente ocorre em datas específicas. Exemplo: dia da padroeira. Que de santa só mesmo a sua estátua desbotada. Existe a resenha simples, que é quando as pessoas se juntam para beber com os colegas que moram fora como se a saudade só morresse na base da cachaça, mas existe também a resenha unificada — que é quando os amigos são próximos em nível familiar, acontecendo geralmente nas roças que agora todas as famílias estão adquirindo para tal finalidade. Existe a festa de rua, que o próprio nome já diz, e também a festa-inferninho — que são festas que começam da porta da boate mais decadente da cidade pra dentro. Era meu sonho de criança saber como era o mundo depois daquelas luzes coloridas. Acho que é cinza, dá pra ver no olhar sem vida de quem se escora na porta à procura de uma alma fosforescente. Ou de um cigarro, que também brilha no escuro.

Existe a festa-movimento, que é a festa cult da cidade, promovida por um grupinho elitizado de chinelos de couro. É a festa-toca-Raul. Elas sempre aconteciam no já finado, embora recentemente reformado, Grêmio Cultural A Voz do Povo. O Grêmio sempre foi meu sonho de infância, mais do que o inferninho, porque eu queria desesperadamente ter meu grupo de amigos contendo o “menino do violão” — que geralmente é o objeto de desejo de toda adolescente. Mas o guitarrista da minha cidade não me atrai. O que toca violão me dá medo. O que canta é o mesmo que toca violão. O que tem uma banda é o mesmo que toca guitarra. O que escreve eu não conheço. O que é altamente engajado politicamente me assediou quando eu tinha treze anos. O que é alternativamente bonito é polêmico. O que é da galera é escroto. O que é engraçado é idiota. O que é o príncipe é um mistério. Por fim, existe a festa-festa. A festa-festa é aquele evento com pulseiras. Plebe e realeza. Open bar e chão de terra. No final das contas, é tudo no mesmo ambiente ruim. E eu iria em todos eles. É bom ver o ruim se transformando em mistério. E o mistério em qualquer coisa. E qualquer coisa em quase algo. E quase algo em algo. E algo em alguém. Ora, se sou míope é porque você nunca está perto. Se emudeço é porque todas as minhas palavras te escutam.