Romance policial (III)
O assassinato de um prefeito de uma cidade paulista tem sido objeto de teorias conspiratórias que servem como instrumento de demonização política. Segundo a hipótese que surge desses raciocínios mirabolantes, a vítima foi assassinada não por bandidos que queriam o seu dinheiro, mas por sicários a mando de um líder político.
Tal hipótese já foi verificada pela polícia, que constatou o seguinte: trata-se uma teoria sem fundamento. Ainda assim, nas redes sociais, a teoria vai e vem, e quem a dissemina desconsidera as conclusões da investigação. Ou sequer sabe que as forças da lei já desmentiram essa tese.
O que interessa nesta crônica é a situação em que a polícia acaba sendo colocada ao ter que considerar hipóteses que não levam a nada. E talvez isso seja bastante comum. Pode-se dizer que investigadores também têm o seu “dia de Blue”. Mas o que seria isso?
Estou recorrendo a um dos meus autores favoritos, Paul Auster. Refiro-me a um personagem dele, Blue, que protagoniza o romance “Fantasmas”, obra que faz parte da brilhante “Trilogia de Nova York”.
No livro, o personagem principal é contratado por um homem chamado White para vigiar um cara chamado Black. A obra de Auster subverte uma das principais premissas do romance policial. Aquela que diz: “a ação criminosa rompe com a ordem e a normalidade”. Blue observa Black, mas este não faz nada fora do comum. Assim, o cotidiano prossegue inabalado. Pode-se dizer que trata-se de um “antirromance policial” ou um “romance antipolicial”.
Se resolvêssemos adaptar as teorias conspiratórias - que tentam explicar a tragédia do prefeito paulista - para uma história policial, e colocássemos no enredo alguma dose de realismo, o resultado também seria um antirromance.
Evidentemente, tal crime implica na existência de supostos assassinos. Então, os investigadores do caso (e protagonistas da história) teriam que seguir, observar e ter extrema atenção com os suspeitos. Isso implicaria os personagens numa situação parecida com a de Blue e Black.
À espera de comportamentos suspeitos relacionados ao caso, os investigadores sofreriam com o fastio. Talvez os observados demonstrassem alguma conduta esquisita, mas não teria a ver com o que estava sendo investigado. Ou pode ser que mesmo não tendo nada a esconder, os investigados pela morte do prefeito tivessem uma vida mais agitada do que a de Black.
Por causa da modorrenta rotina de Black e do dia escuro, somados à neve que começou a cair e a atrapalhar a visibilidade, Blue ficou sem nada para fazer. Se “Black não parece mais do que uma sombra”, o que ele teria para espiar? No entanto, isso significava que Blue teria tempo para ler seu jornal e suas revistas favoritas.
Por outro lado, no nosso antirromance sobre o prefeito assassinado, os protagonistas, que vivem no Brasil, não teriam que lidar com a neve. E Blue e Black vivem na década de 1940. Hoje há mais alternativas para se distrair, graças aos avanços tecnológicos. Portanto, um policial brasileiro pode gostar de revista e jornal, mas ele provavelmente tem um smartphone com redes sociais. Imaginei o seguinte diálogo:
“Olha só essa gracinha”, diz investigador A enquanto mostra a tela do seu celular à colega.
“É uma gata!”, afirma investigadora B. “Deu match?”
Possivelmente, os policiais ficariam tão envolvidos na conversa sobre relacionamento que acabariam esquecendo dos alvos de investigação. Mas não se meteriam em encrencas com seus superiores, pois eles não perderiam nada, afinal não estava acontecendo nada de suspeito.
Seria divertido se isso ficasse apenas na ficção. Caso ocorresse de verdade, seria péssimo. O problema, a meu ver, é o desperdício de recursos públicos. Não faz sentido gastar dinheiro com investigações inúteis.