Revéillon - o dia seguinte

Abriu os olhos, preguiçosamente.

Hesitou em levantar-se àquela hora. Na verdade, não sentia-se muito disposta a enfrentar os afazeres domésticos de imediato. Não depois daquele Revéillon. Ergueu-se um pouco, fazendo certo esforço. Sentia uma tênue dor de cabeça, produto das doses de vinho e do espumante da alta madrugada. Não era dada às bebedeiras, mas vamos e venhamos - era Fim de Ano, e ela estava muito feliz. Passou com velhos amigos, que há muito não os via. Riam à vera com todas aquelas estórias dos tempos de faculdade, em meio às bebidas, aos aperitivos, às frutas, aos desejos de um Ano Bom. Ela de fato não poderia reclamar do ano que chegava ao fim. Tinha muito a agradecer - o novo trabalho, o fiel namorado, a saúde que continuava impecável, quase aos quarenta anos. Ainda passou por sua cabeça a contagem regressiva, a TV de seu apartamento mostrando as imagens da queima de fogos na Praia de Copacabana, os amigos aninhando-se na sacada do prédio, os gritos, assobios, os acenos aos transeuntes, todo o clima de positivismo que mareava a orla da praia. Faltava pouco, agora. Uma amiga trazia consigo dois pratos com lentilhas, e a ofereceu um deles - "é pra dar sorte", afirmava, entre risos. Menos de um minuto. Alguns fogos já anunciam toda a magia, o encantamento prestes a tomar conta dos ares da cidade. Grupos de pessoas vestidas de branco caminham em direção às areias, levando garrafas de espumante, flores, oferendas. Lembrou-se do tradicional bloco dos Filhos de Gandhi, em sua mais recente visita à Salvador, no Carnaval passado. Sempre sentia um friozinho na barriga na virada do ano - toda a expectativa de um ano melhor a cada Revéillon. Checou novamente o relógio .As pessoas do prédio ao lado já gritavam o bordão "Feliz Ano Novo", em meio às taças que tilintavam no ar, num abre-alas esfuziante. De repente, sentiu-se abraçada - sua amiga já lhe desejava as boas-vindas a 2008. Todos se congraçavam alegremente, uns mais ébrios, outros menos. "Este é o momento em que a meia-noite fica tão clara quanto o dia", meditava, enquanto o foguetório refletia em suas retinas. Quisera que toda aquela positividade, toda aquela harmonia criasse raízes por todos os 366 dias do ano recém-nascido há minutos. Seu celular tocou - era o namorado, a desejar-lhe um feliz ano novo. Sorriu encabulada - estava apaixonada. Quem sabe aquele seria o ano de um noivado prometido há meses. Sorveu um copo de uma batida preparada com pêssego, champanhe e leite condensado, servido pela amiga. A madrugada transcorreu num clima festivo e muito animado, até a aurora da manhã, quando os primeiros raios solares despontavam no horizonte, a iluminar o primeiro dia do Ano Novo. E lá estava ela. Deitou-se novamente. De leve, girou a cabeça, enquanto fitava, por sobre o criado-mudo, a carteira de cigarros. Não era uma fumante compulsiva, mas há tempos sentia vontade de parar com aquele vício. "Não me lembro de ter feito esta promessa na virada", ponderou consigo mesma. Decidida, levantou-se, pegou o maço, foi até a cozinha, levantou a tampa do cesto de lixo e o jogou lá dentro. Resolveu que 2008 seria o Ano de muitas mudanças. "Meu hábito de fumar acabou com o ano velho", sorriu com sua primeira vitória. Pensou em mudar o corte do cabelo, ir às compras, passear pela orla, para sentir a brisa do mar. Pegou sua bolsa, analisou o estado do apartamento. "Vou sair para viver a vida!", e sorrindo, fechou a porta, pôs seus óculos escuros, certa de que ela mesma já estava em clima de mudanças, para uma vida melhor.

Marcio Roque
Enviado por Marcio Roque em 08/01/2008
Reeditado em 08/01/2008
Código do texto: T808974