DOR E SOMBRA
Certos desejos tem voz áspera e pele hostil.
Adoram saltitar nos folguedos do querer-bem e nas rebarbas
do que teimamos acarinhar.
São gomos austeros enfurnanos nas cavernas guardadas
nos cantos da gente, feito duendes alucinados à cata de luz.
Esses desejos agrestes vagueiam como zumbis por todo canto,
por vezes disfarçados de afago, por vezes escancarados de solidão.
São réstias abruptas de uma insana casca, oca e desanuviada,
absorta nas próprias ancas e querelas, donas da própria dor e sombra.
Já os flagrei rosnando, soluçando, parindo.
Já os fiz confessar, desnudar e debandar de mim.
Foram inócuos voos alvissareiros, solenes. Talvez benditos.
Então os deixei debandar, alforriados,
numa couraça oca de sonhos e poréns.
Assim pude esbravejar o que tinha de mais lindo e terno.
Para, quem sabe, até esvoaçar, até morrer.