Asilo

Chego em casa exausta depois de um dia de trabalho, mas não o trocaria por nada. Gostaria apenas de receber um salário melhor. É muito empenho todos os dias e nada sobra depois de pagar os boletos.

Aprendo muito convivendo com minhas colegas, os médicos e médicas, enfermeiras e pacientes.

Eu tinha tantos sonhos quando terminei o ensino médio. Nossa, faz tanto tempo. Ter cursado enfermagem deu um norte para minha vida. Descobri algo que adoro fazer e nunca fiquei só um dia desempregada. Até hoje tenho amigas daquela época da escola.

Eu imaginava que teria uma vida tão diferente da que levo, talvez o nome disso seja ilusão. Eu não reclamo, mas tenho que admitir que achava que eu teria uma vida mais tranquila, com menos problemas e responsabilidades.

A rotina de cuidados com os pacientes do meu setor é intensa. Tenho a sorte de trabalhar numa casa de repouso localizada perto do Pico do Jaraguá (SP) onde temos muitos idosos com idade avançada e uma excelente memória, autonomia (uns mais outros menos) e disposição para conversar. É bom vê los à tarde vendo televisão, batendo papo, costurando, fazendo tricô, crochê, preenchendo livros de palavras cruzadas ou desfrutando de jogos de tabuleiro.

Eufemismo para asilo a casa de repouso onde trabalho tem uma espaçosa área para pacientes pagantes , um jardim enorme e bem cuidado por um profissional, lotado de lindas roseiras, plantas e arbustos variados e podados pelo jardineiro talentoso e outro prédio também branco e grande que abriga pessoas, digamos, sem posses.

As visitas são recebidas em dias e horários pré-definidos que devem ser respeitados pelos familiares e amigos dos e das pacientes.

Aos fins de semana e alguns feriados a clínica ,setor onde trabalho, pelo menos, fica lotado de visitantes. Alguns são tão frequentes que sabem os nomes dos funcionários e em datas como páscoa ou aniversário nos trazem mimos, chocolates.

Um dos velhinhos nunca recebe visita. Há anos eu o vejo triste, sentado em um canto da sala, magro, um rosto delicado, tem olhos arredondados, cabelos brancos, aparência frágil, sempre usa calça e camisa, tem a voz rouca e fica com os olhos marejados quando observa ao longe as visitas chegando para os outros.

Alguns pacientes têm famílias grandes que se revezam para visita los, outras pacientes têm amigas também idosas, muito presentes, que não deixam de fazer visitas de tempos em tempos.

Ouvi uma enfermeira mais antiga “de casa “dizer que ele nunca recebeu uma visita sequer. Confesso que curiosa eu perguntei, e daí ela comentou que ele aposentou-se depois de décadas de trabalho e com esse dinheiro ele mesmo paga a mensalidade. Ela também falou que ele teve filhos e deve ter netos e netas.

Vê-lo isolado, olhar vago, expressão triste, deixava meu coração apertado. Eu questionava comigo mesmo como alguém consegue não visitar pai ou mãe internados num asilo! Isso é abandono. A única palavra – eu não ousava dizer – que eu pensava era “crime”. Na correria para cumprir as tarefas do trabalho não sobrava tempo para conversar com os pacientes. Eu observava que ele falava com outros internos. Os quartos eram separados para homens e mulheres. Tudo sempre limpo e muito organizado.

Na tarde último feriado prolongado, mês passado, a sala de visitas ficou lotada e eu vi várias “caras novas”. Em datas assim familiares e amigos vêm de longe, de outro município, às vezes de outro estado e aproveitam para rever seus entes queridos.

Foi nesse dia que conheci dona Crisálida, uma senhora simpática, baixinha, corada e falante que veio de longe visitar uma prima, ou algo assim.

Enquanto conversava com as pacientes ela observava o homem sem visitas. Ele estava sentado no jardim, num dos bancos de cimento. O dia estava agradável e sol era fraco, o céu estava encoberto e talvez chovesse mais tarde.

Eu estava por perto e percebi que ela olhava na direção dele como se o conhecesse, com uma expressão de tensão na face como se estivesse, talvez tentando lembrar seu nome. Na sala era possível escutar aquele zum-zum-zum de lugar cheio de gente. Era gostoso e raro ver tantas visitas e confraternização. Alguns idosos são muito carinhosos, abraçam, pegam crianças no colo, choram, são emotivos.

Crisálida veio até mim, ofereceu um docinho e perguntou se aquele homem sentado no jardim por acaso se chamava Porfírio.

Eu espantada fiz um gesto que sim com a cabeça. Atônita e alegre porque pela primeira vez alguém o conhecia!!! O nome dele era diferente, nunca conheci outro Porfírio.

Crisálida, que não queria ser chamada de dona ou senhora, mudou de expressão quando eu disse:

Sim. O senhor Porfírio está há muitos anos conosco e nunca recebeu uma visita sequer. A primeira pessoa que sabe seu nome e o reconhece é você!

Nessa hora seu olhar se encheu de raiva e seu rosto ficou vermelho, o sorriso sumiu e ela parecia estar se controlando para não ter uma ataque de ira ou dizer muitos palavrões. Eu fiquei confusa, mas busquei me manter imparcial e solícita.

Ela ficou quieta por alguns segundos como se estivesse escolhendo as palavras que diria.

Crisálida estava concentrada e me disse:

- Eu não sabia que essa peste ainda estava vivo. Bem feito. Ele não merece visita nenhuma. Está colhendo exatamente tudo o que plantou.

Eu não consegui esconder a cara de espanto. Ela percebeu e prosseguiu:

- Eu conheci toda a família, a esposa, os três filhos e sei que ele tem uma média dúzia de netos. Essa 'coisa' era terrível com a esposa, finada Antônia, que era um doce, dona de casa, mãe carinhosa e aturou por décadas esse carrasco. Os filhos depois da morte da mãe foram saindo de casa, um foi morar com a namorada, a menina foi trabalhar em outro estado e por lá ficou e o caçula foi dividir um quarto minúsculo com amigos porque ninguém suportava morar com esse demônio. Quando ele se viu sozinho na casa muito antiga em um terreno enorme, sem saber onde os filhos moravam, deve ter percebido o quanto mal ele tinha feito e passou a ir no cemitério levar flores para o túmulo da finada esposa, toda semana. Cheio de remorso, com certeza. Viúvo, amargo, largado pelos filhos que mereciam e precisavam conviver com alguém que tivesse no peito um coração, ao invés de uma pedra, fizeram muito bem de ir embora. Eles o odeiam e com razão, era um marido bruto e um pai desgraçadamente ignorante. Eu no lugar dos filhos faria o mesmo e jamais traria um neto para conhecê-lo. Ele merece estar assim, morto e enterrado em vida. Uma pessoa maldosa, sem amigos, que nunca tratou nenhum ser vivo com carinho”.

Eu estava atônita. Ela desabafou como se estivesse vomitando algo amargo e de uma só vez. Depois retomou aos poucos o fôlego, o brilho nos olhos voltou, o sorriso no canto dos lábios ressurgiu. Ela logo mudou de assunto e voltou para perto da sua familiar. Eu fiquei parada, em silêncio por alguns minutos.

Depois desse dia percebi que as pessoas são muito mais complexas e possuem muitas camadas, por isso são difíceis de entender.

Eu julgava os tais filhos que não visitavam o pai. Olhava com certa revolta para aquele bom homem que sentava em um canto isolado e pouco falava, parecia injustamente abandonado, que, ao meu ver, sofria de ingratidão familiar.

Ouvir aquele desabafo foi como levar um tapa no rosto. Eu estava aprendendo uma lição valiosa para toda a minha vida. Nem tudo é o que parece e a vida pode ter caminhos surpreendentes. O ditado popular que afirma que “o plantio é opcional, mas a colheita é obrigatória “ nunca fez tanto sentido para mim.

Manuh Danorte
Enviado por Manuh Danorte em 19/06/2024
Reeditado em 19/06/2024
Código do texto: T8089373
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