O HOMEM DA FILA
Era mais um dia de eleição e hoje, ao passar pelas notícias do nosso país, eu me lembrei dele.
Naquele dia, ainda meio de longe pelo meu caminho, eu logo o avistei enquanto eu me aproximava do recinto, uma universidade privada, que cedia seus equipamentos para que o pleito ocorresse.
Ele , a aguardar na mesma fila que seria a minha , era impossível não ser notado pelos olhos mais atentos.
Ele poderia, com legitimidade legal e de vida, não estar mais ali, mas estava.
Cumpriria sua obrigação como um soldado da boa batalha...era a maior mensagem que ali se lia.
Tratava-se dum senhor, provavelmente na oitava década da vida, magérrimo e pálido, que com muito custo se mantinha sobre as próprias pernas, a aguardar sua vez para sua colaboração ao grande acontecimento do voto.
A passos curtos e cambaleantes, vez ou outra , ele avançava no seu propósito, numa postura de cidadania impecável.
Pela aparência frágil, pensei que talvez aquela fosse apenas uma das tantas vezes que ele já aguardara nas filas da vida...nas que pouco andam à frente.
O que mais me chamava a atenção era que, a despeito das limitações do tempo, ele ainda acreditava.
E eu acreditei na sua crença apenas a passar meus olhos , como se fossem eles um sensor, a escanear a vontade da sua alma.
Trajava-se com roupas simples mas impecavelmente alinhadas.
Uma calça de "jeans" escuro que escorregava pela sua cintura *sarcopência e uma camisa branca de mangas compridas, que soava alvejada para a grande data, cujo colarinho era arrematado por um nó duma antiga gravata cor de vinho, de tecido padronizado com florezinhas amarelas que ,como as flores do campo, pipocavam alegremente na esperança de florescerem num mesmo terreno adubado pelos projetos de vida dos Homens.
Talvez estivessem as flores no mesmo sonho de prosperidade coletiva que ainda movimentava aquele senhor na fila do voto.
Seus sapatos eram dum verniz preto já craquelado, enlaçados por cordões no dorso dos pés.
Senti como se , há muito tempo, fossem eles a lhe sustentarem as caminhadas pelas pedras.
Todavia, o que mais me comoveu, foi enxergar sua identidade e seu título de eleitor , incrivelmente conservados, cuidadosamente agarrados pelas suas mãos trêmulas, como se ali ele os segurasse como os dois maiores tesouros da sua jornada na dura terra.
Quem sabe estaria ali mais uma chance perdida, mas recuperada, de encontrar um oásis dentre a aridez dos caminhos?
Naquele dia, senti que o homem da fila me seria mais uma crônica vinda de dentro e confesso que também senti certa vergonha de mim.
Hoje, conforme já expliquei, eu passava pela notícias do nosso país e , ato contínuo , ele me permeou fortemente as lembranças.
Talvez nem esteja ele mais por aqui...
Voltou a mim sua presença marcante e metafórica de alguém, que apesar do tudo, nunca deixou de acreditar.
O homem da fila, que também era aminha, não era só um Homem.
Talvez fosse o Anjo da Resiliência, a resgatar a Esperança, em forte oração por todos nós.
Nota
*sarcopênica: adjetivo técnico referente à SARCOPENIA, que é a perda da massa muscular, em várias escalas, que acontece nas pessoas muito idosas e ou nas desnutridas de qualquer idade.