Romance Policial (II)
Contaram-me a história de Gilmar, um trabalhador da construção civil, que começou a ser perturbado pelo telefone celular que tocava na madrugada. Não era telemarketing, que gostava de “encher o saco”, mas não costumava ligar nesse horário para a casa dos outros. Na primeira vez que ele atendeu, a voz do outro lado da linha admitiu que cometeria um crime.
“Vou apagar um cara aí na sua área”, disse a voz.
“Quem está falando?!”
Desligou.
Seria um trote, o cara ligou para o número errado ou era algum maníaco com a intenção de avisar a pessoas aleatórias que iria matar alguém?
Antes de entender a resposta, um pouco de digressão: o telefonema para Gilmar me lembrou de uma obra-prima da literatura: A Trilogia de Nova York, do grande Paul Auster, que faleceu recentemente. Trata-se de uma abordagem pós-moderna da literatura policial. Composto de três histórias, a ideia central é partir da história detetivesca para chegar em questões mais amplas, como identidade e realidade.
A primeira da histórias, Cidade de Vidro, começa com o telefone do protagonista “tocando três vezes, altas horas da noite, e a voz do outro lado chamando alguém que não morava ali”. Por outro lado, a voz que falou com Gilmar não procurava ninguém e ainda comunicava algo mais grave: que iria assassinar uma pessoa.
Apesar das diferenças entre as duas situações, não consegui resistir e imaginei que talvez Gilmar acabasse encarando uma luta semelhante ao do protagonista de Cidade de Vidro. Ou seja, que ele ficasse confuso ao adentrar em questões que põem em xeque a realidade e a identidade dele mesmo.
No entanto, acho que não precisou de perguntas filosóficas para deixar Gilmar e os ouvintes da história do telefonema com sérias dúvidas. Sobre a pergunta de parágrafos atrás, não há resposta conclusiva. De fato, mataram gente na mesma semana que Gilmar recebeu a ligação. Mas ele mora em um bairro violento de Salvador, onde não é incomum pessoas serem assassinadas.
Portanto, a pessoa que telefonou pode ser, ou não, um assassino. Pode ser, ou não, alguém que passa trotes. Ele deu poucas informações. Fez uma afirmação genérica. Disse que ia matar alguém, mas não especificou onde, quando ou como seria a vítima. Entretanto, um criminoso não seria tão tolo a ponto de revelar tudo isso. Ele acabaria dando a oportunidade para que a vítima fosse salva.
Em outra imaginação minha, cogitei que, em comparação com Gilmar, esse suposto assassino estaria mais próximo do personagem principal de Cidade de Vidro. Na história de Paul Auster, o protagonista acaba confundindo ficção e realidade. Ele, um escritor de romances policiais, começa a adotar as características de seu detetive fictício.
Pergunto-me se a voz que falou com Gilmar por telefone seria de um autor de romances policiais que acabou confundindo-se com um de seus personagens, um assassino que telefona para avisar seus crimes, demonstrando uma autoconfiança absurda.
E já que estou falando de uma história específica de Paul Auster, é de se perguntar: o metafórico título “Cidade de Vidro” é aplicável a Salvador? O vidro é vulnerável à distorção óptica, o que significa que habitantes de uma “cidade de vidro” podem ser vítimas de uma realidade distorcida.