O corpo

Compareci a uma universidade para assistir a apresentação de um aluno de mestrado que estava treinando para defender sua dissertação. Na sua pesquisa, ele analisou reportagens televisivas de duas emissoras distintas e concorrentes. Depois de ter assistido trechos dessas duas produções jornalísticas, comecei a refletir comigo mesmo. Uma moça que também estava assistindo o “ensaio” pediu a palavra para fazer comentários e sugestões ao trabalho acadêmico do rapaz. Uma parte da fala dela me incentivou, involuntariamente, a aprofundar a minha reflexão.

"As reportagens desses canais parecem novelas. Tudo para prender audiência. Tem até trilha sonora", disse a moça.

Eu concordei, apesar de não ter dito isso para ela e para os demais presentes. Os chamados “programas policialescos” pegam o método visto em folhetins (novelas são folhetins televisivos) e aplicam em reportagens ao vivo para prender a atenção do telespectador e com isso evitar que ele mude de canal. Pode ser também que essas emissoras de TV aprenderam uma das lições do escritor Ian Fleming, o criador de James Bond e autor de vários romances centrados nesse personagem.

Diz Fleming, em seu valioso ensaio “How To Write A Thriller”: “Só existe uma receita de [livro] best-seller e é muito simples. Você tem que fazer o leitor virar a página”. Aplicando esse princípio na televisão, poderíamos ter a seguinte máxima: “Você tem que fazer o leitor ficar longe do controle remoto. No mesmo ensaio, Fleming é sincero: “Escrevo, descaradamente, por prazer e dinheiro”.

Não há nada de errado nesses conceitos apresentados por Fleming. São até recomendáveis se você quer ganhar algum dinheiro vendendo livros. No entanto, ele referia-se a textos ficcionais. De certa maneira, é possível aplicar também a gêneros não-ficcionais. O problema é que a linguagem da TV é distinta do livro ou do jornal/revista em que o folhetim é publicado. As pessoas reais relacionadas a um crime ou tragédia semelhante têm suas imagens expostas, que servem de matéria-prima para tentar obter audiência. É por isso que a aplicação do “método Folhetim” pode transformar a reportagem televisiva (ao vivo ou não) em algo de caráter sensacionalista.

Em um trechos que nos foi apresentado, o programa televisivo reportava sobre as buscas pelo corpo de um rapaz que havia sido assassinado. O padrão de folhetim foi aplicado, e ficou parecendo que a reportagem estava utilizando do sofrimento alheio para ganhar dinheiro através da audiência. É como se um dos princípios de Fleming, sobre escrever por dinheiro, fosse distorcido pelos produtores, jornalistas e apresentador. Na TV, não havia personagens de ficção. A família do jovem e seus conhecidos eram reais e sofriam. Suas dores eram usadas como munições para prender a atenção de quem assistia.

E assim como acontece na ficção pulp, há até elemento surpresa. Na produção jornalística em questão, um corpo foi encontrado, mas não era do rapaz desaparecido. Era de outra pessoa, irreconhecível, por causa do estado avançado de decomposição.

Um verdadeiro horror.

No trecho que nos foi mostrado, não aparece o desfecho. E não pesquisei para saber. Então, não faço ideia se o corpo do jovem foi encontrado. Apenas sei que a ética jornalística e a empatia estavam mais perdidas que a vítima.

RoniPereira
Enviado por RoniPereira em 17/06/2024
Código do texto: T8087680
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